O que é ética animal?

O que é ética animal?

por Luciano Carlos Cunha[1]

Introdução

             A ética trata de como deveríamos agir e por quê. Assim, a ética animal discute como deveríamos agir (e por que) quando nossas decisões afetam os animais não humanos. A seguir está um breve resumo do tópico central discutido em ética animal: a questão do especismo.

 

A situação típica dos animais

Os animais não humanos sofrem e morrem sendo explorados nos mais diversos setores: para a fabricação de produtos alimentícios, em experimentos, vestuário, entretenimento, transporte, como trabalhadores etc. Os animais criados para consumo normalmente passam por sofrimento intenso durante toda a vida. Por exemplo, muitos deles são amontoados em uma única gaiola, sem nunca poderem se mover durante toda a vida, sofrem com inúmeras doenças e tem de se deitar por cima de seus excrementos. Além disso, independentemente de terem sido criados sob condições intensivas ou nas chamadas fazendas de criação livre, os animais são mortos geralmente por métodos que causam enorme sofrimento (não é incomum que sejam escaldados, esquartejados ou tenham sua pele arrancada quando ainda estão plenamente conscientes[2]), além de sofrerem muito no transporte até os matadouros. Além do sofrimento, há também o dano da morte: literalmente vários trilhões de animais não humanos morrem todos os anos, somente para consumo[3]. Isso significa que a quantidade de animais morta mundialmente por dia já é maior do que a população humana mundial. Como as vítimas são animais não humanos, tal situação não é normalmente vista como um problema pela maioria das pessoas (é normalmente vista como um problema apenas se afetar indiretamente os interesses humanos ou ameaçar a preservação do meio ambiente).

A situação típica dos animais que estão na natureza também é altamente negativa. Muitos dos danos dos quais padecem são resultados diretos ou indiretos de práticas humanas. Entretanto, independentemente de ação humana, os processos naturais já os prejudicam em alto grau. São rotineiramente vítimas de desastres naturais, condições meteorológicas hostis, doenças, fome, sede etc.[4]. Além disso, a maneira como acontece a dinâmica de populações tende a maximizar a quantidade de animais que nasce apenas para sofrer e morrer de modo bastante prematuro. Isso ocorre porque a maior parte das espécies de animais se reproduz maximizando a quantidade de filhotes (algo comum em répteis, anfíbios, peixes e em invertebrados em geral), que vão desde milhares até muitos milhões por ninhada, dependendo da espécie. Em períodos de aproximada constância populacional, em média sobrevivem até à idade adulta apenas 2 filhotes de cada ninhada. Todo o restante nasce geralmente apenas para experimentar sofrimento intenso e morrer, sem nunca ter tido nenhuma experiência positiva[5]. Ainda que atualmente não se saiba como prevenir vários desses danos, há muito que já poderia ser feito para ajudar esses animais em muitos casos[6] e muito mais poderia ser pesquisado[7]. Entretanto, novamente, por se tratar do sofrimento e das mortes de animais não humanos, a maior parte das pessoas, ou não vê isso como um problema relevante, ou vê como um problema relevante apenas se afetar indiretamente os interesses humanos ou as metas ambientalistas, como a preservação da biodiversidade ou do equilíbrio ecológico. O bem dos próprios animais não é normalmente visto como importante em si.

 

O especismo: dois pesos e duas medida, dependendo da espécie dos afetados

Como vimos, o uso de animais não humanos como recursos é amplamente aceito e praticado. Entretanto, fazer o mesmo com humanos é amplamente considerado inaceitável. Por exemplo, se humanos estivessem a ser criados e mortos para serem transformados em comida, dificilmente seria dito que as razões para sermos vegetarianos tem a ver com a preocupação com a própria saúde ou com o meio ambiente. Em vez disso, seria reconhecido que a injustiça que as vítimas sofrem é uma razão suficiente para tal. Porém, como as vítimas reais são animais não humanos, o discurso é o oposto: a preocupação com os animais é colocada em último lugar (quando aparece), atrás da preocupação com os interesses humanos e das metas ambientalistas – atitude que é por vezes reproduzida, inclusive, dentro do ativismo da causa animal.

Vimos também que os animais na natureza padecem de enorme sofrimento e mortalidade que poderiam em muitos casos serem evitados, mas normalmente escolhe-se não ajudá-los. Entretanto, se as vítimas fossem humanas, seria amplamente considerado importante ajudá-los (por preocupação com o próprio bem das vítimas, e não por uma preocupação indireta ambientalista).

Esses dois tipos de situações evidenciam que a maior parte das pessoas se baseia em um padrão moral duplo, dependendo de se as vítimas pertencem ou não à espécie humana. É possível justificar essa disparidade ou trata-se de uma forma de discriminação contra quem não pertence a certa espécie (que vem sendo chamada de especismo[8], por analogia ao racismo)?

 

É possível justificar um tratamento privilegiado a humanos?

Várias tem sido as tentativas de justificar essa disparidade. A principal delas aponta que os animais não humanos carecem de certas capacidades ou relações (como capacidades cognitivas complexas, um senso de justiça, o entendimento do que são direitos, uma linguagem, a capacidade de contribuírem para a sociedade, relações de reciprocidade, terem poder suficiente para defenderem a si próprios etc.). Entretanto, seja lá qual for a capacidade ou relação escolhida, há uma enorme quantidade de humanos que também não as possui: bebês, crianças até certa idade, vítimas de certos acidentes ou doenças que afetam as capacidades cognitivas etc. Muitos desses humanos sequer têm o potencial para vir a desenvolver essas capacidades, já que sua condição é irreversível. Entretanto, se a falta dessas capacidades ou relações nesses humanos não pode justificar tratá-los pior (muito menos poderia justificar fazer a eles o que é rotineiramente feito aos animais não humanos), então a falta dessas capacidades ou relações nos animais não humanos não poderia justificar tratá-los pior do que os humanos (muito menos poderia justificar o que é feito rotineiramente a eles[9]). Aliás, a falta dessas capacidades ou relações naqueles humanos é normalmente vista como uma razão para dar-lhes um cuidado ainda maior, e não para causar-lhes sofrimento ou a morte. Então, a falta dessas capacidades ou relações nos animais não humanos é, igualmente, uma razão para lhes dar um cuidado ainda maior, e não para justificar prejudicá-los.

Há autores que defendem que, mesmo que não possuam essas capacidades, aqueles humanos devem ser respeitados, pois pertencem à espécie humana, ao passo que os animais não humanos devem ser excluídos porque não possuem aquelas capacidades[10]. Mas, perceba que esse argumento já assume de antemão aquilo que visa provar: primeiro tenta justificar o critério da espécie apontando que ele revela quem possui ou não certas capacidades ou relações, e depois utiliza o próprio critério da espécie para dizer quando o critério das capacidades e relações deve ser utilizado ou não.

 

A importância da senciência

Saber quem possui capacidades cognitivas complexas é certamente relevante para saber quem deve ser responsabilizado. É por isso que um adulto normal é responsabilizável e um bebê não é. Mas, isso não implica que também seja relevante para saber quem deveria ser respeitado. Alguém precisa de respeito porque é passível de ser prejudicado e beneficiado, e não porque possui capacidades cognitivas complexas[11]. É por essa razão que a senciência (a capacidade de ter experiências) é relevante para saber quem devemos respeitar, pois determina: (1) quais seres são alguém (e não, meramente, algo) e (2) quais seres são capazes de ser prejudicados e beneficiados (uma vez que as experiências são experimentadas como positivas ou negativas). É por essa razão que os animais não humanos precisam de consideração. Não é porque pertencem ao reino animal, ou porque estão vivos em um sentido biológico (como estão as plantas, por exemplo). É simplesmente porque são passíveis de serem prejudicados com a presença de estados mentais negativos (todas as formas de sofrimento, físico ou psicológico) ou com a ausência de estados mentais positivos (que acontece quando morrem, por exemplo).

Se temos razões para considerar moralmente alguém porque ele é passível de ser prejudicado e beneficiado, então, a força dessas razões depende da magnitude dos prejuízos e benefícios em jogo, e não da espécie a qual pertence ou de suas capacidades ou relações. Isso sugere então que não apenas não há justificativa para excluir os animais não humanos da esfera de consideração moral: também não há justificativa para dar-lhes uma consideração menor[12]. Em uma abordagem não tendenciosa, prejuízos e benefícios de magnitude similar recebem o mesmo peso, independentemente da espécie, raça, gênero, capacidades, relações etc. de quem receberia esses prejuízos ou benefícios. É por essa razão que o especismo é análogo ao racismo: ambos violam esse princípio e, por isso, são formas de discriminação.

 

Testando se uma atitude é ou não especista

Há algumas perguntas muito simples que sempre podemos fazer para testarmos se estamos sendo ou não tendenciosos contra os animais não humanos. Por exemplo, podemos perguntar se consideraríamos a atitude em questão justa[13]: (1) se não soubéssemos a espécie dos que seriam prejudicados e dos que seriam beneficiados por ela; (2) se não soubéssemos a espécie a qual pertencemos; (3) se suas vítimas fossem humanas, padecendo de danos de mesma magnitude; (4) se os papéis fossem invertidos (por exemplo, se os beneficiários fossem animais não humanos, e os prejudicados fossem humanos); (5) se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para poder alcançar os benefícios obtidos por ela.

Ao que parece, sob tais condições, aquilo que é feito atualmente aos animais não humanos (sua exploração e a negligência em receberem ajuda) seria amplamente considerado injusto, ou mesmo hediondo. Parece também que, sob tais condições, rejeitaríamos dar graus diferenciados de consideração moral dependendo da espécie a qual um ser senciente pertence ou de suas capacidades. Isso tudo parece indicar não apenas que não há justificativa para aquilo que é feito aos animais não humanos, mas que também devemos fazer algo para tentar mudar essa situação.

 

Referências

ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.

 

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.

 

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021a.

 

EHNERT, J. The argument from species overlap. Blacksburg: Virginia Polytechnic Institute and State University, 2002.

 

FISHCOUNT. Fishcount estimates of numbers of individuals killed in (FAO) reported fishery production. Fishcount: Reducing suffering in fisheries, 2019. Disponível em: http://fishcount.org.uk/studydatascreens/2016/fishcount_estimates_list.php. Acesso em: 24 ago. 2021.

 

HORTA, O. Debunking the Idyllic View of Natural Processes: Population Dynamics and Suffering in the Wild. Télos, v. 17, p. 73-88, 2010.

 

HORTA, O. Moral Considerability and the Argument from Relevance. Journal of Agricultural and Environmental Ethics, v. 31, n. 3, p. 369-388, 2018a.

 

HORTA, O. Un paso adelante en defensa de los animales. Madrid: Plaza y Valdés, 2017.

 

HORTA, O. O que é especismo? Tradução de Gustavo H. Coelho e Arthur F. Lima.  Ethic@, v. 21, n. 1. p. 162-193, mai. 2022 [2010].

 

HORTA, O., ALBERSMEIER, F. Defining speciesism. Philosophy Compass, v. 15, n. 11, p. 1-9, 2020.

 

OUR WORLD IN DATA. Number of animals slaughtered for meat, World, 1961 to 2018. Our world in data, 2018. Disponível em https://ourworldindata.org/grapher/animals-slaughtered-for-meat?country=~OWID_WRL. Acesso em: 25 set. 2021.

 

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ROWE, A. Insects raised for food and feed — global scale, practices, and policy. Rethink priorities, 29 jun. 2020b. Disponível em: https://rethinkpriorities.org/publications/insects-raised-for-food-and-feed. Acesso em: 25 set. 2021.

 

ROWE, A. Silk production: global scale and animal welfare issues. Rethink priorities, 19 abr. 2021. Disponível em: https://rethinkpriorities.org/publications/silk-production. Acesso em: 25 set. 2021.

 

ROWLANDS, M. Animal rights: Moral, theory and practice. 2a ed. New York: Palgrave Macmillan, 2009 [1998].

 

SCHUKRAFT, J. Managed honey bee welfare: problems and potential interventions. Rethink priorities, 14 nov. 2019. Disponível em: https://rethinkpriorities.org/publications/managed-honey-bee-welfare-problems-and-potential-interventions. Acesso em: 25 set. 2021.

 

SCRUTON, R. Animal rights and wrongs. London: Metro, 1996.

 

SINGER, P. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da ONG Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt).

[2] Para uma descrição detalhada do sofrimento dos animais explorados, ver Horta (2017, p. 65-98).

[3] Para estatísticas, ver Fishcount (2019), Our World in Data (2018), Rowe (2020a, 2020b, 2021) e Schukraft (2019).

[4] Ver Animal Ethics (2021, p. 8-59) e Cunha (2022, p. 19-34).

[5] Sobre isso, ver Horta (2010) e Animal Ethics (2021, p. 55-59).

[6] Ver Animal Ethics (2021, p. 60-85), Cunha (2022, p. 280-284).

[7] Ver Animal Ethics (2021, p. 136-182).

[8] Sobre a definição de especismo, ver Horta (2022 [2010]) e Horta e Albersmeier (2020).

[9] Esse argumento é discutido em detalhes em Ehnert (2002).

[10] Ver, por exemplo e Scruton (1996, p. 54-55).

[11] Esse argumento é desenvolvido em mais detalhes em Horta (2018) e Cunha (2021, p. 57-61).

[12] Para uma explicação mais detalhada sobre esse princípio, ver Singer (2002, cap. 3) e Cunha (2021, p. 61-66)

[13] Um método similar é sugerido por Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).

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