O caso Filó e as consequências nefastas do cientificismo

 

O caso da capivara Filó mobilizou as mentes e o coração das pessoas. Muitos são a favor de que Filó permaneça com seu tutor; outras defendem veementemente que Filó estaria ‘melhor’ na natureza. Mas afinal, quem teria a razão? Uma coisa é certa: existem inúmeras discussões envolvendo o caso, mas poucas tocam na única questão que realmente importa: o bem estar de Filó.

Quais animais podem ou não ser “pet”? Qual seria o impacto ambiental de ter animais silvestres sendo criados por humanos? A exposição de Filó nas redes sociais serviria de incentivo para que outras pessoas “adotem” animais selvagens? Estaria o tutor de Filó “privando-a de desempenhar seu papel na manutenção dos processos naturais”? O caráter do tutor de Filó não seria duvidoso, já que ele vive em uma fazenda e, muito provavelmente, explora animais como porcos, vacas e galinhas?

Nenhuma dessas pautas está realmente preocupada com o indivíduo mais afetado nessa situação: Filó. Ela vive desde bebê com seu tutor. E muito provavelmente teria morrido caso o mesmo não tivesse cuidado dela.

O caso de Filó não é único

Em 2019, um caso semelhante ocorreu no Equador: uma denúncia anônima levou as autoridades ambientais equatorianas até a propriedade de Ana Beatriz Burbano Proaño. Elas buscavam uma macaca que vivia ali há 18 anos. Em 11 de setembro de 2019, Estrellita foi arrancada do único lar que já conheceu e levada para uma unidade de conservação animal, onde foi posta em uma jaula. Pouco depois da apreensão, em 28 de janeiro de 2020, Estrellita faleceu.

Ana Beatriz entrou na justiça para pedir a devolução de Estrellita e argumentou que os direitos do animal tinham sido violados. O caso aconteceu em 2019, mas só foi resolvido em 2021, quando o tribunal concordou que as necessidades do animal foram completamente ignoradas durante o processo de realocação. Por força da decisão da suprema corte do Equador, os indivíduos que vivem na natureza devem ser moralmente considerados porque eles possuem interesses. Eles não são “meras partes dos ecossistemas ou exemplares de uma espécie”, mas sim indivíduos.

A vida na natureza não é um paraíso. Lá existem muitos perigos, que levam ao extremo sofrimento e mortes horrendas e prematuras. É importante desmistificar o suposto “Éden” que seria a natureza, pois disso depende o bem-estar de todos os indivíduos que ali vivem. Enquanto as pessoas acreditarem que os animais vivem vidas razoavelmente boas na natureza, eles continuarão a sofrer imensamente.

A ciência como agente ‘neutro’ é uma invenção

Em geral, cientistas gostam de afirmar que o método científico é uma prática neutra, desprovida de interesses pessoais. Mas essa afirmação não passa por uma análise mais atenta.

Basta recordarmos a recente epidemia de COVID-19 que assolou o mundo. A ciência foi usada como ficha em um jogo que ceifou milhões de vidas. A ciência ora era usada à favor da vacinação e do distanciamento social, ora era usada contra tais medidas. Se os cientistas realmente defendessem o bem-estar das pessoas – ao invés de fazerem declarações como ‘o método científico é perfeito’- a população muito provavelmente teria um maior entendimento da importância da vacinação como medida de saúde pública. Essa crise mundial se deu, em certa medida, pelo distanciamento entre a academia e a sociedade civil.

A ciência se apresenta como um método muitas vezes incompreensível – quase mágico- em um mundo onde não sabemos como as engenhocas à nossa volta funcionam. A ciência se mostra como um método altamente descritivo, mas com pouco, ou nenhum, senso crítico.

Qual é a relação desse tema com a capivara Filó? Dentre todos os argumentos levantados em favor da capivara ser ‘reintegrada’ à natureza, os piores foram os argumentos que usam a ciência não apenas como força de autoridade, mas também igualando o método descritivo (ciência) com a ética. De repente, a biologia e a ecologia viraram sinônimo de ética. Os perigos de tal pensamento são inúmeros; as consequências, aterrorizantes.

Abaixo está transcrito o comentário de um profissional da biologia feito nas redes sociais que sintetiza muito bem as consequências desse erro macabro:

Aí gente eu não me aguento! Tinha jurado que não ia mais fazer esse tipo de comentário explicando pq as pessoas nunca querem entender ou acham que milhares de estudos sobre o assunto são mentiras. Mas vou fazer mesmo assim pq desinformação e ignorância é pior, quem quiser acreditar acredita e quem não quiser não acredita. Minha parte eu vou fazer.

Vamos por partes:

1- Os animais devem ser mantidos na natureza pq é onde estarão melhor: não só por esse motivo, mas pq eles tem um papel a desempenhar na natureza, funções importantíssimas e direito de exercer seu comportamento natural como todo ser vivo.

2- Viver na natureza não é pior para os animais. Em um ambiente natural sem interferência humana ele vai tá vivendo normal; para eles aquilo é normal, parem de humanizar os animais e acharem que eles vão ter essa percepção humana de sofrimento e “aí tadinho de mim, sou uma presa um dia vou morrer predado” . Qual o conceito de pior para vocês? Os animais tem essa mesma visão?

Vou tentar resumir mais alguns pontos que devem ser discutidos:

A situação típica na natureza não é negativa, cheia de dor, sofrimento e morte como as pessoas estão falando. O que vcs tem q entender é que na natureza tudo se equilibra. Os animais passaram por anos de evolução e adaptação para viverem sob aquelas condições, o mundo não é um conto de fadas, a natureza vai escolher e selecionar os mais adaptados. “Ah, mas então os menos adaptados devem morrer??” SIM!! Parem de querer interferir em tudo, vocês desequilibram uma coisa que está funcionando perfeitamente a milhares de anos!!

“Vocês estão achando que o mundo é um filme da Disney??? Vocês se acham Deus para decidir e interferir na vida de cada criatura?? Tudo isso aí que acontece – desnutrição, fome e sede, doenças, lesões físicas, estresse psicológico, eventos meteorológicos hostis, desastres naturais, conflitos interespecíficos, interespecíficos e sexuais- não é nada mais, nada menos que A VIDA, como eu disse a natureza é perfeita, e através disso que ela seleciona os mais aptos, os melhores para passarem seus genes e melhorarem sua evolução, os fracos perecem e os fortes continuam. Aloooo, seleção natural meu povoo!!!! Se isso tudo não fosse normal, se a natureza não selecionasse hoje não teríamos nada pq ia tudo morrer na primeira chuvinha ou primeiro sinal de doença ou adversidades.

 E outra!!!!! Os animais que morrem por esses N motivos não são desperdiçados não!! Eles viram adubo, servem de alimento para outros animais menores, ajudam a equilibrar e manter saudável todo o ecossistema, entre diversas outras coisas.

“Falar que a probabilidade de um animal selvagem sobreviver e ter um bem estar positivo na natureza é muito pequena é mentira! ME POUPE, de onde vocês tiraram essa informação?? Em que artigo, pelo amor de Deus, vcs leram isso?? Vcs acham que reintroducao de animal é brincadeira?? Vcs acham que desequilíbrio ambiental é brincadeira? Eu vou poupar meu tempo e paciência e recomendar para vocês um documentário “Como os lobos mudaram os rios” .

Nós, biólogos, fazemos anos de pesquisa não para inventar informações. DE ONDE vcs tiraram tantas informações falsas? Vcs acham que o trabalho dos pesquisadores de anos de experiência é piada? “Tem que se levar em conta os danos e benefícios que o animal vai ter” NÃO. A gente leva em conta não só isso, como os danos e benefícios para todos os outros animais ali presentes e para todo o ecossistema, ou vcs acham que a gente solta bicho aleatoriamente em qualquer lugar? Plmds, isso é um trabalho sério, que tem q ser muito bem planejado e analisado antes de acontecer, parem de tirar informações da cabeça de vcs e dar como verdades.

“O que é certo é fazer o que for natural” SIM! Vocês estão pensando em um único animal quando tem uma escala MUITO maior de fatores e coisas no meio, um animal morrer prematuramente por exemplo predado, já vai alimentar outro animal ou vários outros animais, seu corpo também vai ser utilizado por plantas, fungos e bactérias. Então parem de ter esse pensamento pequeno que só uma única vida importa quando a muito mais sob questão.

O animal tem noção de sofrimento? Será que o sofrimento pra ele não é não poder exercer seus comportamentos e hábitos naturais, como reprodução por exemplo, que já está programado em seu próprio DNA através de anos de evolução?

Ai eu pergunto, o ser humano tá incluso ali no ecossistema natural? Os animais tem DIVERSOS papéis na natureza, são dispersores, predadores, controladores, bioindicadores, equilibradores. A morte de algum ser humano vai tá servindo de adubo, alimento ou algo do tipo?? Vai estar desempenhando um papel ali? Vcs agem como se o ser humano estivesse incluso em todos os papéis dos animais. É claro que ninguém defende a morte pra si próprio, não vai ter função nenhuma já que o corpo vai ser coletado e enterrado por outros seres humanos mesmo, nem de adubo direito a gente tá servindo. Não estamos inclusos na natureza do mesmo modo que os animais estão, daqui a pouco vem um doido me dizer “ah mas não somos animais tbm?” SIM, mas tu tá vivendo lá no meio do mato, comendo, caçando, servindo de presa, de alimento, de dispersor de sementes pra alguma coisa? Entendam que já saimos desse meio, nosso papel e interferência são muitoooooooo diferente dos animais.

“Ética é sobre evitar prejudicar e buscar ajudar indivíduos”. A tradução de vcs é “ética é salvar e beneficiar todo bichinho que eu ver pela frente “. Eu não vou nem perder o meu tempo aqui pq isso é ridículo, então os outros animais morrem de fome né? Então o ecossistema que lute pra se manter só de sol e ar né? Afinal vamos salvar todos os bichinhos e torna-los imortais e intocáveis. Vai dar bom sim, confiem!!!

Enfim, estudem sobre ética animal, desequilíbrio ambiental, seleção natural, ecossistemas naturais, direitos dos animais silvestres, efeito cadeia, zoonoses. Pq não é fácil a gente fazer anos de estudo e formação, pra qualquer um vir afirmar na internet que “a natureza é um lugar ruim e cruel portanto devemos salvar os bichinhos dela”. É isso que a mensagem de vocês da a entender, vcs sabem qual o perigo e riscos disso?? Vcs tem noção que alguém pode ler uma coisa dessas pegar um animal na natureza pra “salvar” ele e acabar matando o animal por diversos motivos?? Podem causar desequilíbrio ambiental?? Podem TRAZER ZOONOSES? Vcs esqueceram na pandemia? Sabiam que isso foi causado por uma zoonose? E zoonose acontece quando temos proximidades com animais silvestres ou eles conosco ou através dos efeitos de nossas ações e podemos gerar novas doenças tanto para eles quanto para nós??

Quem realmente buscar se informar e entender vai saber do que tô falando, quem quiser continuar acreditando em contos de fadas e em um mundo “perfeito” pode continuar tbm mas agora vcs tem a ciência de que tais ações tem consequências que vcs nem imaginam ou tem conhecimento.

 

Como pode-se notar, o comentário defende a manutenção de ecossistemas e a preservação de espécies às custas do bem-estar dos indivíduos. E se o mesmo fosse defendido para seres humanos? Será que nossa tolerância com os processos naturais seria a mesma?

Kaarlo Pentti Linkola (Helsinque, 7 de dezembro de 1932 – Valkeakoski, 5 de abril de 2020) foi um ecologista profundo radical, naturalista e escritor. Linkola acreditava que somente uma mudança radical pode deter o colapso ecológico. Ele argumentava que todas as populações humanas do mundo, sejam elas desenvolvidas ou não, não merecem sobreviver às custas da biosfera como um todo. Em maio de 1994 Linkola foi entrevistado pelo The Wall Street Journal Europe, onde declarou abertamente ser a favor da diminuição radical da população humana mundial, e referindo-se a uma futura guerra mundial alegou: “Se eu pudesse apertar algum botão, me sacrificaria sem hesitar, se soubesse que milhões de outras pessoas morreriam”. Em mais de uma ocasião Linkola defendeu eventos como a II Guerra Mundial e o Holocausto, pois eles dizimaram milhões de pessoas e impediu que muitas outras viessem a nascer.

Será que nosso amigo biólogo defenderia tal posição? Se invertermos a seta e defendermos o mesmo para seres humanos, estaríamos agindo de acordo com o discurso de Linkola: temos valor apenas pelo nosso impacto no ecossistema e pelo valor de nossa espécie. O fato de sermos indivíduos conscientes, capazes de sentir, não é moralmente relevante.

Um dos muitos erros de nosso amigo biólogo é confundir a ciência da ecologia com a ética. A ecologia ocupa-se de descrever o meio ambiente e os seres vivos que vivem nele, ou seja, faz o estudo da distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam a sua distribuição. É uma abordagem altamente complexa – porém essencialmente descritiva. A ecologia não se ocupa do estudo envolvendo o que fazer para melhorar o bem-estar dos seres conscientes. Esse é o campo da ética.

Nosso amigo biólogo parece equiparar a biologia – em especial a ecologia – com a ética. Conforme sua crença -e sim, é uma crença (altamente equivocada, por sinal)- que tudo que a biologia descreve, por se tratar de fenômenos de origem natural, são automaticamente bons para os indivíduos. Nosso amigo comete o erro conceitual de equiparar uma prática descritiva -a biologia e a ecologia (que descreve como as coisas são)- com a ética -uma prática que prescritiva (que nos informa como devemos agir). Esse erro pode nos levar a situações absurdas: doenças são um fenômeno natural. Conforme essa visão, então seria erro desenvolver tratamentos, medicações, vacinas e realizar procedimentos em indivíduos (humanos e não humanos) a fim de melhorar seu bem-estar. Ora, devemos preservar tudo que é natural, e doenças são um fenômeno natural. Se seguirmos essa linha de raciocínio, o correto seria deixar qualquer enfermo perecer para, como o autor do post mesmo diz, “cumprir sua função ecológica e virar adubo”.

Esse é o grande problema quando o conceito equivocado da “adaptação do mais forte” é evocado. A adaptação não é do mais forte, e sim do mais apto. Mas esse não é o grande problema aqui: se não devemos criar mecanismos que protejam os mais vulneráveis (se a adaptação tem que ser apenas dos mais aptos) porque então criamos, por exemplo, legislações que protegem os mais vulneráveis (crianças, idosos, pessoas com problemas de desenvolvimento e até mesmo indivíduos não humanos?). Se formos seguir o que o texto prescreve, devemos então desconsiderar os interesses dos vulneráveis pois sua função no mundo é ‘servir aos interesses dos mais aptos’, nem que seja como adubo.

O curioso é que o próprio autor admite que as condições de vida na natureza são horríveis, mas argumenta que como essas condições são de origem natural e podem ser descritas pela ciência, logo elas são circunstâncias boas para o todo (ecossistemas). Nosso amigo parece não compreender que ecossistemas e espécies não são seres conscientes. Devemos preservar ecossistemas de maneira que estes ofereçam a melhor condição possível de vida para todos que ali vivem, e não apenas preservar ecossistemas porque eles possuem valor em si. Preservar um ecossistema simplesmente porque ele é natural -e não porque ele fornece condições de vida para os animais – é o mesmo que defender que não podemos fazer uma reforma em nossa casa porque ela deve ser mantida em seu estado primordial, sem alterações.

Imagine a seguinte situação hipotética: prédios e casas como sendo o “ecossistema” humano. Faria sentido existir leis que concedessem direitos à casas e prédios, e que esses devem permanecer em um estado considerado primordial apenas porque “assim seria o correto”? Se o telhado da sua casa tivesse alguma goteira, você não poderia modificá-lo porque estaria, assim, alterando o ecossistema. O preço a pagar pela manutenção do ecossistema considerado ideal seria ter uma goteira em telhado, ocasionalmente sua casa inundada e sofrer com a ameaça constante de uma pane elétrica. Tudo isso porque sua casa possui direitos. Ela é moralmente considerada. Você não. A casa não te serve como abrigo, moradia e interação social. Não! Isso seria um absurdo! Você serve à manutenção de um suposto estado ideal dessa casa –mesmo que isso custe o seu bem-estar.

Nesse exemplo hipotético, podemos perceber o absurdo que trata essa visão. Os ecossistemas devem ser preservados às custas do bem-estar dos indivíduos conscientes porque a ciência da ecologia, que descreve o meio ambiente e os seres vivos que vivem nele, têm sua capacidade descritiva elevada ao status ético: tudo que pode ser descrito pela ciência é automaticamente, bom. Logo, toda ocorrência natural, mesmo que implique em piores condições para os indivíduos sencientes, deve ser não apenas mantida, mas encorajada.

É verdade que os animais evoluíram por milhares de anos para resistirem ao frio, ao calor, para correrem, para se camuflarem, etc. Mas é igualmente verdade que nem tudo que é natural vai acontecer em benefício deles. Se nós humanos, sofremos com doenças, com as intempéries, com a violência, por que o sofrimento suportado pelos animais selvagens seria de menor importância? Os animais silvestres não suportam essas condições porque “querem realizar sua natureza”. Eles vivem, sofrem e morrem de maneiras horríveis simplesmente porque não tem escolha; porque nós decidimos arbitrariamente que seu sofrimento não é tão importante quanto o nosso.

Nosso amigo passa algum tempo falando de questões como reintrodução de animais na natureza. Esse seria o grande “trunfo” de sua argumentação. Ora, se viver na natureza é tão bom assim, porque o ser humano, através de sua história, tentou –e ainda tenta- se libertar das amarras da natureza? Alguém gosta de fome, sede, doenças, ser vulnerável às intempéries, de viver em um ambiente hostil e violento? Claro que não. Não há razões para afirmarmos que os animais não humanos, seres com os quais partilhamos mais semelhanças que diferenças, não sejam capazes de sentir. Usando apenas as evidências científicas, podemos concluir que sentir envolve vantagens evolutivas aos indivíduos, como saber se comportar perante situações inesperadas e escapar de predadores. Parece que nosso amigo biólogo faltou justamente nessa aula durante seu curso de biologia.

E aí que entramos na questão: de que adianta a ciência descrever a realidade se não sabe interpretá-la? Descrever não é o mesmo que fazer julgamentos de valor (se algo é bom ou ruim). Se fôssemos levar à risca o que o texto propõe, não teríamos a medicina, por exemplo. O dever dos cientistas seria se restringir a descrever o corpo humano, não a procurar curas e tratamentos para doenças que nos prejudicam e nos fazem sofrer. Da mesma forma, a ecologia que o autor propõe se resume a descrever o que ocorre na natureza, com uma diferença: ele não se restringe a descrever as coisas, vai um passo adiante nessa nefasta caminhada: afirma categoricamente que ajudar é fazer mal “a um todo” que não é capaz de sentir ou de ser prejudicado. Como no exemplo hipotético que demos, a casa não pode ser alterada, mesmo que isso faça com que os seres humanos que vivem dentro dela pereçam. De maneira análoga, os ecossistemas devem ser preservados, mesmo que às custas do bem-estar dos animais.

A crença equivocada que a ciência é o único conhecimento verdadeiro que existe é parte desse problema. A ciência pode nos dar tanto maravilhas quanto pesadelos. Descrever como as coisas funcionam e aplicar esse conhecimento não é o mesmo que fazer o julgamento de valor: esse conhecimento deve ser usado? Se sim, para que? Como tal conhecimento pode beneficiar os seres conscientes? Tal conhecimento pode trazer danos e prejudicar alguém? O que fazer para evitar tal cenário? Parece que essas – e muitas outras questões – passam desapercebidas pela mente de nosso amigo biólogo, assim como da maioria da comunidade científica, que acredita que seu conhecimento e suas aplicações são neutras de valor e, portanto, estão blindadas contra qualquer oposição que não venha da própria ciência.

Que pena que não houve oposição suficiente às teorias científicas que afirmavam que certos seres humanos não eram pessoas de verdade, ou que o corpo das mulheres era defeituoso e inferior ao masculino por natureza. Que pena que certos humanos foram considerados descartáveis pela ciência de sua época. E que pena que não aprendemos com nossos erros, e estamos repetindo todos esses horrores com os animais não humanos, sejam eles domesticados ou selvagens.

 

O caso Filó é mesmo sobre a Filó?

Muitos acusam o tutor de Filó de explorá-la para ganhos econômicos. A questão do tutor ser um influencer não diz nada sobre o estado da capivara. Ela está bem cuidada? Tem uma boa qualidade de vida? Suas necessidades básicas estão sendo atendidas? Ao que parece, o tutor faz de tudo para que Filó tenha uma boa vida – muito melhor do que teria se estivesse na natureza. Não lhe faltam comida, cuidados médicos e atenção emocional. Logo, o fato dele ser um influencer não diz nada sobre como Filó está sendo tratada. O que diz isso são as atitudes do tutor, que parece se preocupar genuinamente com Filó e lhe prover uma boa vida.

Quanto ao fato do tutor de Filó estar dando “um mau exemplo ao incentivar outras pessoas a adotar animais silvestres como pets”, esse é um salto lógico que não se comprova na prática. É o mesmo tipo de salto que se dá quando algumas pessoas afirmam que “a internet causa violência”. A violência já existia antes da TV, do rádio e da internet. Não há nada que comprove que esses meios criaram a violência. Elas são apenas mais uma plataforma para que o ódio e a violência se espalhe. O caso de Filó se apresenta da mesma forma: não existe relação direta entre exposição de animais nas redes sociais e a preferência das pessoas por esses animais. Sim, você pode comprovar uma correlação, mas é importante ressaltar que essa correlação só aponta para fatores que são anteriores às redes sociais: humanos sempre tiveram e sempre terão preferências por determinados animais. A capivara, por não temer contato com humanos, ser dócil e ser constantemente avistada nas cidades sempre foi alvo da empatia humana. Essa preferência pré-data a exposição de animais nas redes sociais.

 

Importante ressaltar que as redes também podem ser usadas no sentido inverso, desde a denúncia de maus-tratos até a exposição de como a vida dos animais na natureza é cheia de dor e sofrimento.

Quanto ao IBAMA estar cumprindo a lei, de fato, ele está cumprindo a lei. Mas é importante ressaltar alguns aspectos:

  • A lei não está gravada na pedra. Isso significa que ela está sujeita a interpretação. A lei é um guia de como agir. Não devemos matar, entretanto a lei cobre situações onde matar se configura um ato justificado. A lei está sujeita a interpretação de acordo com o caso (por isso existem juízes para atuas, e não um software que aplica a lei, literalmente);
  • Nem tudo que é legal é ético. Na Alemanha nazista, era perfeitamente legal a discriminação contra os judeus. Isso não torna tal discriminação ética. A lei que o IBAMA segue é, em sua essência, especista, pois os animais não são indivíduos cujos interesses devem ser respeitados. Os animais são meras peças que cumprem uma função dentro do ecossistema. Se os humanos fossem tratados da mesma forma, seria permissível matar milhões de humanos para que se fizesse ‘controle populacional’;
  • Como seguidor de um arcabouço jurídico especista, o IBAMA não leva em conta os interesses dos animais enquanto indivíduos. Na prática, isso significa que este órgão pode tomar ações cruéis, tais como apreender gambás e ao invés de ajudá-los a retornar ao seu habitat, servir esses animais como ‘presas vivas’ para predadores como cobras, por exemplo. Essa é uma –das inúmeras- práticas corriqueiras adotadas pelo IBAMA.

Quanto às difíceis condições que os animais enfrentam diariamente na natureza, apenas uma mudança legislativa não fará diferença significativa. Devemos divulgar valores antiespecistas para o maior número possível de pessoas, para que a situação dos animais na natureza seja mudada. Destacamos que quanto mais antiespecista for a sociedade, mais os interesses do seres sencientes serão considerados.