Por que a senciência e não a vida?

 

Por que a senciência e não a vida?

 

            Luciano Carlos Cunha[1]

  Indira de Freitas Nimer[2]

 

 

Os seres sencientes são aqueles seres capazes de ter experiências. Possuem uma perspectiva de primeira pessoa – isto é, não são meros corpos vazios. Faz sentido perguntar: “como será que é ser um peixe?”. Por outro lado, não parece fazer sentido perguntar: “como será que é ser um sapato?”. Isso é assim porque o peixe é senciente e o sapato não é.

Por vezes é dito que respeitar todos os seres sencientes é apenas um primeiro passo, pois o ideal mesmo é respeitar tudo o que é vivo. A seguir apresentaremos algumas razões para defender que o critério da senciência é o critério adequado de consideração moral, e não o critério da vida.

Algumas pessoas adotam o critério da vida porque acreditam que a senciência diz respeito somente ao sofrimento. Essas pessoas afirmam que, se o que importasse fosse a senciência, e não a vida, então não haveria nada de errado em matar os animais, desde que de maneira indolor. No entanto, esse entendimento é equivocado. A senciência diz respeito a todas as experiências, não apenas as negativas. Portanto, o sofrimento não é a única forma pela qual os seres sencientes são prejudicados. A ausência de experiências positivas também caracteriza uma forma de prejuízo. É exatamente por essa razão que a morte é um dano. A morte prejudica alguém não porque faz com que perca sua vida biológica, mas porque impede que desfrute das experiências positivas que teria caso continuasse vivo. Tanto é assim que uma vida meramente biológica – sem possibilidade alguma de ter experiências ou de voltar a tê-las, nem mesmo sonhos ou pensamentos – seria exatamente o mesmo que morrer. Em resumo, a explicação de por que a morte é um dano depende exatamente da senciência.

Já outras pessoas pensam que o adequado é respeitar tudo o que é vivo porque acreditam que todas as coisas vivas não sencientes são passíveis de serem prejudicadas. Mas é difícil imaginar como isso seria possível. Em primeiro lugar, é a senciência que determina se certa entidade é alguém e não algo. É o que indica que se, naquele corpo, há alguém capaz de experimentar o mundo – isto é, que não é um corpo vazio. Coisas vivas não sencientes, por outro lado, são literalmente corpos vazios. Não há ninguém ali para sentir coisa alguma. Portanto, não há ali alguém que seria possível prejudicar ou beneficiar. Em segundo lugar, o fato de as experiências serem experimentadas como positivas ou negativas é o que torna possível que os seres sencientes sejam prejudicados ou beneficiados – é o que faz com que prefiram certas coisas em vez de outras. Novamente, é difícil imaginar como é possível organismos vivos não sencientes serem literalmente prejudicados. Já que não experimentam certas coisas como positivas e outras como negativas (pois não experimentam nada – não há alguém ali para experimentar as coisas), não possuem uma preferência por se encontrarem nesse ou naquele estado.

Outro problema com o critério da vida é que, além de considerar seres que não são passíveis de serem prejudicados, excluiria certos seres passíveis de serem prejudicados. Até o momento, todos os seres sencientes são também seres vivos (ainda que, como vimos, há muitos seres vivos que não são sencientes). Mas é possível que no futuro haja seres sencientes que não serão biológicos. Se a senciência aparecer toda vez que certas condições estiverem presentes (ainda que atualmente não se saiba ao certo quais são essas condições) então é possível que no futuro surjam seres sencientes em meios digitais. Por exemplo, a presença de um sistema nervoso com um órgão centralizador (como um cérebro, por exemplo) parece desempenhar uma função tal que cria as condições para o aparecimento da senciência. Mas, é possível que a senciência apareça toda vez que a matéria estiver organizada de modo a desempenhar a mesma função, independentemente do tipo de substrato em que acontece – e não apenas nos seres cujo corpo é feito de carbono (isto é, os seres vivos).

O ponto é: se pensarmos que devemos consideração moral apenas a entidades vivas, então não daremos consideração moral aos seres que, apesar de serem igualmente capazes de sofrer e desfrutar, não serão organismos biológicos. Seria feito a eles todas as coisas horríveis que são feitas atualmente aos animais não humanos. Por outro lado, se nossa preocupação for com todos os seres passíveis de serem prejudicados e beneficiados, então daremos a todos os seres sencientes o mesmo grau de consideração moral, independentemente de serem biológicos ou não biológicos. Isto é, se o que nos importa é evitar prejudicar e buscar beneficiar, então rejeitaremos não apenas o especismo, mas também o substratismo.

Por tudo o que foi apontado, se o que importa para saber quem devemos respeitar é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado, então parece que temos fortes razões para adotar o critério da senciência, e não o critério da vida.

 

 

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org

[2] Bacharelanda em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Contato: indiranimer.eticaanimal@gmail.com

 

Insetos são sencientes

 

Os insetos estão entre os grupos mais abundantes de animais terrestres. Devido a isso, qualquer visão preocupada com a consideração moral dos seres sencientes, especialmente dos que se encontram na natureza, precisa prestar muita atenção à situação desses animais. A senciência dos insetos é objeto de investigação científica em andamento, e há algumas evidências importantes de que eles são sencientes, porque possuem habilidades sensoriais e sistemas nervosos altamente desenvolvidos. Em geral, os insetos vivem vidas complexas e ativas para as quais a senciência pode ser adaptativa. Alguns insetos também mostram um comportamento complexo, como a dança-linguagem das abelhas. Isso sugere que seus cérebros também podem dar suporte à senciência. Se, como essas evidências indicam, eles são sencientes, e, dada a relevância da senciência, seus números absolutos os tornam muito importantes em nossas decisões sobre como melhorar a situação dos animais.

Compreender os fatores atuais e correlatos da abundância de insetos pode ser útil na comparação de diferentes situações em relação à quantidade total de sofrimento dos insetos presente (ou possível) nelas. Consequentemente, também pode ser útil para prever ou medir as consequências de ações que poderíamos tomar que poderiam ser benéficas ou prejudiciais para eles.

O estudo de populações de insetos também pode ser relevante para o estudo do bem-estar de outros animais em diferentes ecossistemas, porque as populações de insetos podem afetar significativamente as outras populações de animais que vivem no mesmo ecossistema. Mas, a principal maneira pela qual os insetos podem contribuir negativa ou positivamente para os níveis gerais de bem-estar em um ecossistema é bastante direta: através de seus próprios níveis de sofrimento ou bem-estar positivo.

O século 20 viu o surgimento de novas formas de criar e matar um número gigantesco de vertebrados com o desenvolvimento das fazendas industriais (primeiro, para animais terrestres, como aves e mamíferos – galinhas e frangos, porcos e vacas – e mais tarde para animais aquáticos como muitas espécies de peixes).
Este século está testemunhando o surgimento de novas formas de criar e matar um número enorme de invertebrados. Isso está acontecendo por meio da expansão da pecuária industrial para a produção de insetos para produtos alimentícios.

 

Fontes:

https://www.animal-ethics.org

https://www.bbc.com