Como vivem e morrem os animais explorados pelos humanos?

A exploração animal

Os animais não humanos são explorados e mortos pelos humanos todos os dias para as mais diversas finalidades. São usados como alimentovestuáriomodelo de testes, para entretenimentolazer e como trabalhadores ou ferramentas.

A forma de exploração que mais mata animais é, disparadamente, o seu uso na alimentação. É estimado que pelo menos 2 trilhões de vertebrados sejam mortos globalmente por ano para consumo. Isso já significa que em média, em um único dia, são mortos algo em torno de 5,5 bilhões de animais. Para visualizar o quão grande é esse número, basta lembramos que há em torno de 8 bilhões de humanos no mundo. Entretanto, a esmagadora maioria dos animais que os humanos exploram são invertebrados[2]. Se incluirmos os invertebrados na conta, a quantidade total de animais mortos anualmente para consumo sobe para algo entre 9 e 25 trilhões[3].

 

A situação geral dos animais criados para consumo

A seguir, ilustraremos como exemplo da vida típica dos animais explorados a situação dos animais criados para consumo. Entretanto, é importante ter em conta que a situação dos animais explorados para outras finalidades é bastante similar.

Os animais que são criados para consumo, além de perderem a vida, normalmente padecem de intenso sofrimento, desde o momento do nascimento até o momento em que são mortos[4]. Devido à demanda por produtos de origem animal, as fazendas industriais estão organizadas para criar o maior número possível de animais no menor espaço e com o menor custo possíveis. A maioria dos animais não têm espaço algum para se mover. Muitos nem conseguem se virar. Vivem em pisos de concreto ou em grades, continuamente sobre os seus excrementos, o que lhes ocasiona várias doenças e ferimentos.

 

A situação das galinhas, frangos e pintinhos

As galinhas poedeiras vivem amontoadas em gaiolas superlotadas, em um espaço do tamanho de uma folha de papel[5]. Permanecem de pé a vida inteira sobre os arames das gaiolas. Em alguns casos, seus pés ficam presos na malha metálica e, quando são retiradas para serem encaminhadas ao matadouro, muitas vezes suas pernas se quebram e uma parte delas é arrancada.

Por sua vez, os frangos criados para a produção de carne foram geneticamente selecionados para crescerem muito rapidamente[6]. Suas pernas não suportam seu peso, o que lhes causa lesões e dor. Vários deles nem conseguem ficar de pé.

Já os filhotes machos de galinhas poedeiras não são criados para serem consumidos, pois não cresceriam tão rápido quanto aqueles selecionados para esse fim. Normalmente são então jogados em uma máquina onde são triturados vivos, ou em uma lata de lixo, onde morrem asfixiados ou esmagados pelos outros filhotes jogados sobre eles.

 

Doenças que afetam os animais explorados para consumo

Dadas as condições de superlotação, nas fazendas as doenças podem se espalhar rapidamente, dando origem a epidemias. Isso acontece tanto na criação de animais terrestres quanto aquáticos. Quando isso acontece, é comum a matança em massa de animais, incluindo dos saudáveis, mesmo quando é possível tratá-los (pois é mais barato matá-los e fazer nascer outros para substituí-los). Em relação aos animais terrestres, isso geralmente é feito enterrando os animais vivos e cobrindo-os com cal virgem, ou então fervendo-os vivos[7].

As doenças também podem ser encontradas em concentrações muito elevadas em animais aquáticos criados para consumo (embora também ocorram em alto grau entre os que vivem natureza). Assim como acontece com animais terrestres, o fato de as fazendas de criação de animais aquáticos serem superlotadas facilita muito a transmissão de doenças. A superlotação, a má qualidade da água e do ambiente, e o quão estressados ou fracos os animais estão, estão entre os diversos fatores prejudicam as condições dos seus sistemas imunológicos, tornando-os mais susceptíveis às doenças. Além disso, as substâncias químicas presentes nos tanques podem irritar suas peles e membranas mucosas, tornando-os muito suscetíveis a germes, de modo semelhante a quando sofrem devido a ferimentos. Os crustáceos também são afetados massivamente por doenças, causando, dentre outras coisas, cegueira e deformações severas. Algumas delas podem matar populações inteiras em questão de dias.

 

A situação das porcas

Muitas das porcas exploradas para fins de reprodução ficam quatro meses confinadas em minúsculas caixas de metal com piso de ripas. Elas não podem nem mesmo se virar, e só podem se deitar ou se levantar com grande dificuldade[8]. Seus músculos e articulações são gravemente lesionados e elas literalmente enlouquecem por nunca poderem se mover e devido ao tédio decorrente de nunca poderem exercer nenhuma atividade. Os leitões são desmamados a partir de três semanas de idade. Nesse momento elas são novamente engravidadas e o ciclo recomeça até que tenham três anos, quando são então mortas.

 

A situação das vacas e bezerros

As vacas, como todas as fêmeas de mamíferos, só produzem leite após darem à luz. Por isso, são engravidadas continuamente, geralmente por inseminação artificial. Os produtores não querem que os bezerros bebam o leite, pois isso diminuiria os lucros. Então, mães e bebês são separados logo após o nascimento, o que é terrivelmente traumático para ambos, que choram e gritam por vários dias. As vacas são ordenhadas normalmente por 10 meses após serem separadas de seus bebês. Depois são engravidadas novamente e o ciclo é repetido até que estejam completamente exaustas, quando então são mortas.

Os bezerros usados para produzir “carne de vitela” frequentemente vivem em gaiolas minúsculas nas quais sequer podem se virar. É comum que suas cabeças sejam imobilizadas para que não possam exercitar seus músculos, com o objetivo de tornar sua carne tão macia quanto possível. Por isso, são alimentados com fórmulas de baixo teor nutricional, tornando-os tão fracos que muitos nem mesmo conseguem andar quando são enviados para serem mortos[9].

 

Procedimentos que envolvem mutilação

Muitos mamíferos são marcados com ferros quentes e têm arrancados pedaços de seus corpos, como partes das orelhas e das caudas. Os bois e touros tem seus chifres serrados ou queimados com produtos cáusticos. As galinhas têm seus bicos cortados com lâminas quentes. Os porquinhos filhotes têm seus dentes arrancados e as caudas cortadas. Tudo isso é feito sem analgésicos ou anestesia, pois elevaria os custos sem aumento na produtividade.

 

O transporte até o abatedouro

No transporte até o matadouro, os animais são colocados nos caminhões usando espetos, martelos e bastões que dão choques elétricos. As aves são içadas como se fossem coisas. Geralmente são seguradas pelas pernas e atiradas nas gaiolas, o que muitas vezes quebra suas pernas e outros ossos[10]. As condições de superlotação nos caminhões são ainda piores do que nas fazendas. Além disso, os animais são expostos ao calor ou frio extremos e não recebem nenhuma comida ou água durante todo o transporte, pois fazê-lo não seria lucrativo. Vários animais morrem antes de chegarem ao seu destino, o que mostra o quanto sofreram na viagem[11].

 

Como os animais são mortos nos abatedouros

Os animais são mortos de maneiras que causam sofrimento excruciante. Chegando no abatedouro, recebem golpes com estacas para que se movam pelos corredores. Por vezes recebem choques elétricos com bastões e também chutes e socos. Quando não conseguem andar, são arrastados com ganchos cravados em diferentes partes dos seus corpos, que por vezes rasgam essas partes. Além disso, podem ver e ouvir outros animais sendo mortos e sentir o cheiro do sangue desses animais. Depois de serem atordoados são acorrentados pelas pernas e içados do chão de cabeça para baixo, o que por vezes quebra suas pernas.

Como as filas de animais nos matadouros precisam se mover rapidamente, esse processo é feito em alta velocidade, e então é comum que os animais não fiquem realmente atordoados e estejam plenamente conscientes ao serem esfaqueados. Além disso, muitas vezes o esfaqueamento não os mata, e então são esquartejados, fatiados, têm a pele arrancada ou são fervidos enquanto ainda estão totalmente conscientes[12]. Esse destino aguarda todos os animais usados na alimentação, independentemente de terem sido criados em fazendas industriais ou em fazendas “de criação livre”.

 

Como os animais são mortos na pesca

A pesca é uma das formas de exploração que mais mata animais. Estima-se que sejam mortos cerca de 3 trilhões de animais por ano na pesca[13]. Além de perderem a vida, os animais sofrem intensamente, seja nas fazendas de criação de animais aquáticos, seja na pesca em mar aberto. Na pesca com anzóis, o anzol perfura a boca ou outras partes do corpo e, ao arrastar o peixe para fora da água, concentra na região perfurada todo o peso do corpo do animal. Desse modo, o anzol perfura de modo cada vez mais profundo e rasga cada vez mais a parte do corpo onde foi cravado[14]. Os animais que são pescados com redes também sofrem intensamente.

As formas mais comuns pelas quais os animais pescados morrem são[15]: porque seus órgãos internos explodem devido à descompressão; sufocamento; tendo seus corpos cortados enquanto ainda estão conscientes; esmagamento devido ao peso dos outros animais empilhados ou presos nas redes; golpes na cabeça; eletrocussão; hipotermia; envenenamento por dióxido de carbono ou um tiro na cabeça. Outros são cozidos vivos ou até mesmo comidos vivos[16].

 

Exploração sobre insetos

exploração sobre insetos prejudica uma quantidade gigantesca de animais. O espaço destinado aos insetos nas fazendas é ainda menor do que aquele dado aos outros animais em proporção ao seu tamanho[17]. Antes de retirá-los do confinamento, a prática comum é deixá-los sem comida por 12 a 24 horas e reduzir a concentração de oxigênio. Em seguida são mantidos vivos e resfriados a temperaturas próximas a 0ºC. Métodos típicos de matá-los são: congelamento; imersão em água com temperatura superior a 80ºC; por micro-ondas; em fornos de túnel infravermelho e por trituração[18].

 

Atitudes opostas, dependendo da espécie das vítimas

Todo esse sofrimento e essa imensa quantidade de mortes é causada a uma quantidade gigantesca de animais não humanos todos os dias, e é amplamente considerado algo plenamente aceitável. Na verdade, a maioria das pessoas, mesmo sem refletir, solicita que isso ocorra, por meio do seu consumo de produtos de origem animal.

Entretanto, se algo similar fosse feito a membros da espécie humana, a vasta maioria das pessoas consideraria tal atitude como injustificável ou até mesmo como hedionda. Em contrapartida, a atitude de decidir colaborar ou não com a exploração animal é muitas vezes entendida como uma questão de preferência pessoal, do mesmo tipo que a escolha sobre que cor de roupa usar ou sobre que música escutar, ou como algo que apenas quem ama os animais deveria se preocupar, e não como uma questão de justiça (algo que seria amplamente reconhecido se as vítimas fossem humanas).

 

É possível justificar esse padrão duplo?

Se as pessoas possuem atitudes tão díspares dependendo da espécie a qual pertencem as vítimas, então precisam explicar por que seria correto fazer tal coisa com animais não humanos e ao mesmo tempo seria errado fazer o mesmo com humanos. Na verdade, muitas pessoas acreditam que isso é tão óbvio que não necessita de explicações. Entretanto, se é assim, então deveria ser bastante fácil justificar essa disparidade. Porém, há uma forte razão para pensarmos que não há como justificá-la, e a razão é a seguinte: aquilo que explica por que é errado fazer isso com humanos implica automaticamente que é errado fazer isso com qualquer outro ser capaz de sofrer e desfrutar. Vejamos:

A razão pela qual é injusto fazer a mesma coisa com humanos não é porque os humanos pertencem à mesma espécie que pertencemos, ou porque possuem uma série de capacidades cognitivas complexas ou uma série de relações entre si. A razão é muito mais simples: sofrer e morrer daquelas maneiras prejudica gravemente as vítimas. Entretanto, para alguém ser prejudicado gravemente por aquelas situações, não é necessário ter capacidades cognitivas complexas ou certas relações (como atesta o caso dos bebês, por exemplo). Tampouco é necessário pertencer à espécie humana: é inegável que os animais sujeitados a aquela terrível situação são enormemente prejudicados. Dizer que o seu sofrimento e suas mortes não contam porque não pertencem à espécie humana é análogo a dizer que o sofrimento e as mortes de certos humanos não contam por conta de sua raça ou gênero. Isto é, seria um caso de especismo. Por essa razão, parece não haver como justificar esse padrão duplo de moralidade baseado na espécie das vítimas.

 

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da organização Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt). É autor dos livros Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente (2021) e Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas(2022). Publicou também capítulos em outras obras e artigos em periódicos especializados, que podem ser lidos aqui: https://ufsc.academia.edu/LucianoCunha. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org.

[2] Sobre evidência de senciência em invertebrados ver Kavaliers et. al. (1983); Lockwood (1988); Smith (1991), Mather (2001); Mather; Anderson (2007), Cabanac et. al. (2009); Carere; Mather (2019) e Ética Animal (2019a, 2021d, 2022b).

[3] Para estatísticas sobre a exploração de invertebrados terrestres, ver Schukraft (2019) e Rowe (2020, 2021a, 2021b). Sobre a exploração de vertebrados e invertebrados aquáticos, ver Fishcount (2019). Sobre vertebrados terrestres, ver Our World in Data (2018) e Sanders (2018).

[4] Para uma descrição detalhada da situação dos animais explorados, ver Horta (2017a, p. 65-97) e Ética Animal (2016c).

[5] Appleby e Hughes (1991); European Food Safety Authority (2005a).

[6] Weeks; Butterworth (2004); Bessei (2006).

[7] Antena3 (2011); Gayle, D. (2013).

[8] Marchant-Forde (2008).

[9] Van Putten (1982); Le Neindre (1993).

[10] L214 (2009, 2010).

[11] Mitchell (1992); Broom (2003); Averos et. al. (2007).

[12] Warrick (2001); Pitney (2016).

[13] Fishcount (2019).

[14] Cooke e Sneddon (2007).

[15] Robb e Kestin (2002).

[16] Robb e Kestin, Ibid.

[17] Ética Animal (2021c)

[18] Sobre esses métodos, ver IPIFF (2019) e Ética Animal (2021c).

 

Texto originalmente publicado em 

https://senciencia.org/2023/09/27/como-vivem-e-morrem-os-animais-explorados-pelos-humanos/

Especismo

26 de Agosto de 2023 é o 9º Dia Mundial pelo Fim do Especismo.
Mas você sabe o que é especismo?
Especismo é uma forma de discriminação (isto é, um tratamento desfavorável que é injusto) contra quem não pertence a determinada(s) espécie(s). É um termo criado para se fazer uma analogia com outras formas de discriminação, como o racismo e o sexismo. O especismo acontece toda vez que é dado um peso distinto a níveis de prejuízos e benefícios que são similares em membros de distintas espécies. Importante: as vítimas do especismo são os seres sencientes, e não as espécies.
A forma de especismo mais comum é o especismo antropocêntrico, que consiste em desfavorecer quem não pertence à espécie humana. Contudo, existem outras formas de especismo não antropocêntricas (como, por exemplo, dar uma consideração diferenciada aos interesses de animais não humanos dependendo de se nutrimos empatia ou não por tais animais, ou dependendo de se suas espécies estão ou não em extinção).
Um dos exemplos mais visíveis de prática especista é a exploração animal. Contudo, as práticas especistas não se resumem à exploração animal. Por exemplo, há quem rejeite a exploração animal, mas defenda que não devemos ajudar os animais não humanos quando são vítimas de processos naturais (doenças, fome, sede, parasitismo etc.) mas que é correto ajudar se as vítimas forem humanas. Essa atitude é especista porque dá peso distinto aos interesses similares dos membros de distintas espécies.
É importante também distinguir o especismo mesmo dos vários motivos que são endereçados para se tentar justificar o especismo (isto é, as defesas do especismo). O especismo não acontece somente quando a razão alegada para se dar um peso menor aos interesses de membros de certa(s) espécie(s) é o próprio pertencimento à(s) espécie(s) em questão (como acontece na defesa definicional do especismo antropocêntrico).
Outras  formas de defesa muito comuns do especismo antropocêntrico são alegar, por exemplo, que os animais não humanos carecem de certas capacidades (como razão, linguagem, capacidade de reivindicar seus direitos etc) ou de certas relações (como de solidariedade mútua, de poder sobre nós, relações políticas etc.).
O especismo está arraigado em nosso cotidiano. Muitas vezes é difícil perceber que estamos sendo especistas. Respeitar os seres sencientes não é uma questão de escolha ou preferência, mas em dever. Se fosse você quem fosse discriminado injustamente, você acharia aceitável?

Metas ambientalistas Vs Consideração moral dos animais não humanos

Metas ambientalistas Vs Consideração moral dos animais não humanos

Arthur Ghiraldini Genovez, formando em Ciências Biológias pela UFSC e ativista da causa animal, teve seu artigo intitulado ‘Metas ambientalistas Vs Consideração moral dos animais não humanos’ publicado na Revista Peri.

O  artigo analisa algumas objeções ambientalistas à proposta de reduzir/prevenir o sofrimento e as mortes dos animais selvagens em decorrência dos processos naturais (por exemplo, inanição, sede, acidentes, parasitismo etc.) por preocupação com o bem dos próprios indivíduos afetados.

É investigado se essas objeções ocorrem devido aos meios que a proposta de intervir na natureza para ajudar animais não humanos depende (por exemplo, meios tecnológicos) ou devido à meta defendida por essa proposta ser o bem dos próprios animais afetados, em vez de uma meta que seja ambientalista (por exemplo, preservar ecossistemas e espécies).

O autor defende a visão de que as objeções ocorrem devido à meta ser centrada na preocupação com o bem dos próprios animais e que o uso de tecnologia para intervir nos processos naturais já é amplamente aceito na prática pelos próprios ambientalistas. Também é discutido a maneira como o sofrimento e as mortes dos animais selvagens é utilizado como estratégia retórica para se alcançar metas ambientalistas.

O artigo ainda traz questões importantes, porém pouco discutidas dentro da defesa animal:  como as ações ambientalistas tendem a não coincidir com o bem dos animais que serão afetados por essas ações. Por fim, também são brevemente discutidas e refutadas objeções centradas em uma suposta preocupação com os prejuízos que poderiam ser causados aos animais selvagens caso humanos interviessem na natureza para tentar ajudá-los.

Um artigo imprescindível para qualquer pessoa que deseja se aprofundar na discussão sobre o especismo e defesa dos animais.

LEIA O ARTIGO NA ÍNTEGRA AQUI

 

 

O caso Filó e as consequências nefastas do cientificismo

 

O caso da capivara Filó mobilizou as mentes e o coração das pessoas. Muitos são a favor de que Filó permaneça com seu tutor; outras defendem veementemente que Filó estaria ‘melhor’ na natureza. Mas afinal, quem teria a razão? Uma coisa é certa: existem inúmeras discussões envolvendo o caso, mas poucas tocam na única questão que realmente importa: o bem estar de Filó.

Quais animais podem ou não ser “pet”? Qual seria o impacto ambiental de ter animais silvestres sendo criados por humanos? A exposição de Filó nas redes sociais serviria de incentivo para que outras pessoas “adotem” animais selvagens? Estaria o tutor de Filó “privando-a de desempenhar seu papel na manutenção dos processos naturais”? O caráter do tutor de Filó não seria duvidoso, já que ele vive em uma fazenda e, muito provavelmente, explora animais como porcos, vacas e galinhas?

Nenhuma dessas pautas está realmente preocupada com o indivíduo mais afetado nessa situação: Filó. Ela vive desde bebê com seu tutor. E muito provavelmente teria morrido caso o mesmo não tivesse cuidado dela.

O caso de Filó não é único

Em 2019, um caso semelhante ocorreu no Equador: uma denúncia anônima levou as autoridades ambientais equatorianas até a propriedade de Ana Beatriz Burbano Proaño. Elas buscavam uma macaca que vivia ali há 18 anos. Em 11 de setembro de 2019, Estrellita foi arrancada do único lar que já conheceu e levada para uma unidade de conservação animal, onde foi posta em uma jaula. Pouco depois da apreensão, em 28 de janeiro de 2020, Estrellita faleceu.

Ana Beatriz entrou na justiça para pedir a devolução de Estrellita e argumentou que os direitos do animal tinham sido violados. O caso aconteceu em 2019, mas só foi resolvido em 2021, quando o tribunal concordou que as necessidades do animal foram completamente ignoradas durante o processo de realocação. Por força da decisão da suprema corte do Equador, os indivíduos que vivem na natureza devem ser moralmente considerados porque eles possuem interesses. Eles não são “meras partes dos ecossistemas ou exemplares de uma espécie”, mas sim indivíduos.

A vida na natureza não é um paraíso. Lá existem muitos perigos, que levam ao extremo sofrimento e mortes horrendas e prematuras. É importante desmistificar o suposto “Éden” que seria a natureza, pois disso depende o bem-estar de todos os indivíduos que ali vivem. Enquanto as pessoas acreditarem que os animais vivem vidas razoavelmente boas na natureza, eles continuarão a sofrer imensamente.

A ciência como agente ‘neutro’ é uma invenção

Em geral, cientistas gostam de afirmar que o método científico é uma prática neutra, desprovida de interesses pessoais. Mas essa afirmação não passa por uma análise mais atenta.

Basta recordarmos a recente epidemia de COVID-19 que assolou o mundo. A ciência foi usada como ficha em um jogo que ceifou milhões de vidas. A ciência ora era usada à favor da vacinação e do distanciamento social, ora era usada contra tais medidas. Se os cientistas realmente defendessem o bem-estar das pessoas – ao invés de fazerem declarações como ‘o método científico é perfeito’- a população muito provavelmente teria um maior entendimento da importância da vacinação como medida de saúde pública. Essa crise mundial se deu, em certa medida, pelo distanciamento entre a academia e a sociedade civil.

A ciência se apresenta como um método muitas vezes incompreensível – quase mágico- em um mundo onde não sabemos como as engenhocas à nossa volta funcionam. A ciência se mostra como um método altamente descritivo, mas com pouco, ou nenhum, senso crítico.

Qual é a relação desse tema com a capivara Filó? Dentre todos os argumentos levantados em favor da capivara ser ‘reintegrada’ à natureza, os piores foram os argumentos que usam a ciência não apenas como força de autoridade, mas também igualando o método descritivo (ciência) com a ética. De repente, a biologia e a ecologia viraram sinônimo de ética. Os perigos de tal pensamento são inúmeros; as consequências, aterrorizantes.

Abaixo está transcrito o comentário de um profissional da biologia feito nas redes sociais que sintetiza muito bem as consequências desse erro macabro:

Aí gente eu não me aguento! Tinha jurado que não ia mais fazer esse tipo de comentário explicando pq as pessoas nunca querem entender ou acham que milhares de estudos sobre o assunto são mentiras. Mas vou fazer mesmo assim pq desinformação e ignorância é pior, quem quiser acreditar acredita e quem não quiser não acredita. Minha parte eu vou fazer.

Vamos por partes:

1- Os animais devem ser mantidos na natureza pq é onde estarão melhor: não só por esse motivo, mas pq eles tem um papel a desempenhar na natureza, funções importantíssimas e direito de exercer seu comportamento natural como todo ser vivo.

2- Viver na natureza não é pior para os animais. Em um ambiente natural sem interferência humana ele vai tá vivendo normal; para eles aquilo é normal, parem de humanizar os animais e acharem que eles vão ter essa percepção humana de sofrimento e “aí tadinho de mim, sou uma presa um dia vou morrer predado” . Qual o conceito de pior para vocês? Os animais tem essa mesma visão?

Vou tentar resumir mais alguns pontos que devem ser discutidos:

A situação típica na natureza não é negativa, cheia de dor, sofrimento e morte como as pessoas estão falando. O que vcs tem q entender é que na natureza tudo se equilibra. Os animais passaram por anos de evolução e adaptação para viverem sob aquelas condições, o mundo não é um conto de fadas, a natureza vai escolher e selecionar os mais adaptados. “Ah, mas então os menos adaptados devem morrer??” SIM!! Parem de querer interferir em tudo, vocês desequilibram uma coisa que está funcionando perfeitamente a milhares de anos!!

“Vocês estão achando que o mundo é um filme da Disney??? Vocês se acham Deus para decidir e interferir na vida de cada criatura?? Tudo isso aí que acontece – desnutrição, fome e sede, doenças, lesões físicas, estresse psicológico, eventos meteorológicos hostis, desastres naturais, conflitos interespecíficos, interespecíficos e sexuais- não é nada mais, nada menos que A VIDA, como eu disse a natureza é perfeita, e através disso que ela seleciona os mais aptos, os melhores para passarem seus genes e melhorarem sua evolução, os fracos perecem e os fortes continuam. Aloooo, seleção natural meu povoo!!!! Se isso tudo não fosse normal, se a natureza não selecionasse hoje não teríamos nada pq ia tudo morrer na primeira chuvinha ou primeiro sinal de doença ou adversidades.

 E outra!!!!! Os animais que morrem por esses N motivos não são desperdiçados não!! Eles viram adubo, servem de alimento para outros animais menores, ajudam a equilibrar e manter saudável todo o ecossistema, entre diversas outras coisas.

“Falar que a probabilidade de um animal selvagem sobreviver e ter um bem estar positivo na natureza é muito pequena é mentira! ME POUPE, de onde vocês tiraram essa informação?? Em que artigo, pelo amor de Deus, vcs leram isso?? Vcs acham que reintroducao de animal é brincadeira?? Vcs acham que desequilíbrio ambiental é brincadeira? Eu vou poupar meu tempo e paciência e recomendar para vocês um documentário “Como os lobos mudaram os rios” .

Nós, biólogos, fazemos anos de pesquisa não para inventar informações. DE ONDE vcs tiraram tantas informações falsas? Vcs acham que o trabalho dos pesquisadores de anos de experiência é piada? “Tem que se levar em conta os danos e benefícios que o animal vai ter” NÃO. A gente leva em conta não só isso, como os danos e benefícios para todos os outros animais ali presentes e para todo o ecossistema, ou vcs acham que a gente solta bicho aleatoriamente em qualquer lugar? Plmds, isso é um trabalho sério, que tem q ser muito bem planejado e analisado antes de acontecer, parem de tirar informações da cabeça de vcs e dar como verdades.

“O que é certo é fazer o que for natural” SIM! Vocês estão pensando em um único animal quando tem uma escala MUITO maior de fatores e coisas no meio, um animal morrer prematuramente por exemplo predado, já vai alimentar outro animal ou vários outros animais, seu corpo também vai ser utilizado por plantas, fungos e bactérias. Então parem de ter esse pensamento pequeno que só uma única vida importa quando a muito mais sob questão.

O animal tem noção de sofrimento? Será que o sofrimento pra ele não é não poder exercer seus comportamentos e hábitos naturais, como reprodução por exemplo, que já está programado em seu próprio DNA através de anos de evolução?

Ai eu pergunto, o ser humano tá incluso ali no ecossistema natural? Os animais tem DIVERSOS papéis na natureza, são dispersores, predadores, controladores, bioindicadores, equilibradores. A morte de algum ser humano vai tá servindo de adubo, alimento ou algo do tipo?? Vai estar desempenhando um papel ali? Vcs agem como se o ser humano estivesse incluso em todos os papéis dos animais. É claro que ninguém defende a morte pra si próprio, não vai ter função nenhuma já que o corpo vai ser coletado e enterrado por outros seres humanos mesmo, nem de adubo direito a gente tá servindo. Não estamos inclusos na natureza do mesmo modo que os animais estão, daqui a pouco vem um doido me dizer “ah mas não somos animais tbm?” SIM, mas tu tá vivendo lá no meio do mato, comendo, caçando, servindo de presa, de alimento, de dispersor de sementes pra alguma coisa? Entendam que já saimos desse meio, nosso papel e interferência são muitoooooooo diferente dos animais.

“Ética é sobre evitar prejudicar e buscar ajudar indivíduos”. A tradução de vcs é “ética é salvar e beneficiar todo bichinho que eu ver pela frente “. Eu não vou nem perder o meu tempo aqui pq isso é ridículo, então os outros animais morrem de fome né? Então o ecossistema que lute pra se manter só de sol e ar né? Afinal vamos salvar todos os bichinhos e torna-los imortais e intocáveis. Vai dar bom sim, confiem!!!

Enfim, estudem sobre ética animal, desequilíbrio ambiental, seleção natural, ecossistemas naturais, direitos dos animais silvestres, efeito cadeia, zoonoses. Pq não é fácil a gente fazer anos de estudo e formação, pra qualquer um vir afirmar na internet que “a natureza é um lugar ruim e cruel portanto devemos salvar os bichinhos dela”. É isso que a mensagem de vocês da a entender, vcs sabem qual o perigo e riscos disso?? Vcs tem noção que alguém pode ler uma coisa dessas pegar um animal na natureza pra “salvar” ele e acabar matando o animal por diversos motivos?? Podem causar desequilíbrio ambiental?? Podem TRAZER ZOONOSES? Vcs esqueceram na pandemia? Sabiam que isso foi causado por uma zoonose? E zoonose acontece quando temos proximidades com animais silvestres ou eles conosco ou através dos efeitos de nossas ações e podemos gerar novas doenças tanto para eles quanto para nós??

Quem realmente buscar se informar e entender vai saber do que tô falando, quem quiser continuar acreditando em contos de fadas e em um mundo “perfeito” pode continuar tbm mas agora vcs tem a ciência de que tais ações tem consequências que vcs nem imaginam ou tem conhecimento.

 

Como pode-se notar, o comentário defende a manutenção de ecossistemas e a preservação de espécies às custas do bem-estar dos indivíduos. E se o mesmo fosse defendido para seres humanos? Será que nossa tolerância com os processos naturais seria a mesma?

Kaarlo Pentti Linkola (Helsinque, 7 de dezembro de 1932 – Valkeakoski, 5 de abril de 2020) foi um ecologista profundo radical, naturalista e escritor. Linkola acreditava que somente uma mudança radical pode deter o colapso ecológico. Ele argumentava que todas as populações humanas do mundo, sejam elas desenvolvidas ou não, não merecem sobreviver às custas da biosfera como um todo. Em maio de 1994 Linkola foi entrevistado pelo The Wall Street Journal Europe, onde declarou abertamente ser a favor da diminuição radical da população humana mundial, e referindo-se a uma futura guerra mundial alegou: “Se eu pudesse apertar algum botão, me sacrificaria sem hesitar, se soubesse que milhões de outras pessoas morreriam”. Em mais de uma ocasião Linkola defendeu eventos como a II Guerra Mundial e o Holocausto, pois eles dizimaram milhões de pessoas e impediu que muitas outras viessem a nascer.

Será que nosso amigo biólogo defenderia tal posição? Se invertermos a seta e defendermos o mesmo para seres humanos, estaríamos agindo de acordo com o discurso de Linkola: temos valor apenas pelo nosso impacto no ecossistema e pelo valor de nossa espécie. O fato de sermos indivíduos conscientes, capazes de sentir, não é moralmente relevante.

Um dos muitos erros de nosso amigo biólogo é confundir a ciência da ecologia com a ética. A ecologia ocupa-se de descrever o meio ambiente e os seres vivos que vivem nele, ou seja, faz o estudo da distribuição e abundância dos seres vivos e das interações que determinam a sua distribuição. É uma abordagem altamente complexa – porém essencialmente descritiva. A ecologia não se ocupa do estudo envolvendo o que fazer para melhorar o bem-estar dos seres conscientes. Esse é o campo da ética.

Nosso amigo biólogo parece equiparar a biologia – em especial a ecologia – com a ética. Conforme sua crença -e sim, é uma crença (altamente equivocada, por sinal)- que tudo que a biologia descreve, por se tratar de fenômenos de origem natural, são automaticamente bons para os indivíduos. Nosso amigo comete o erro conceitual de equiparar uma prática descritiva -a biologia e a ecologia (que descreve como as coisas são)- com a ética -uma prática que prescritiva (que nos informa como devemos agir). Esse erro pode nos levar a situações absurdas: doenças são um fenômeno natural. Conforme essa visão, então seria erro desenvolver tratamentos, medicações, vacinas e realizar procedimentos em indivíduos (humanos e não humanos) a fim de melhorar seu bem-estar. Ora, devemos preservar tudo que é natural, e doenças são um fenômeno natural. Se seguirmos essa linha de raciocínio, o correto seria deixar qualquer enfermo perecer para, como o autor do post mesmo diz, “cumprir sua função ecológica e virar adubo”.

Esse é o grande problema quando o conceito equivocado da “adaptação do mais forte” é evocado. A adaptação não é do mais forte, e sim do mais apto. Mas esse não é o grande problema aqui: se não devemos criar mecanismos que protejam os mais vulneráveis (se a adaptação tem que ser apenas dos mais aptos) porque então criamos, por exemplo, legislações que protegem os mais vulneráveis (crianças, idosos, pessoas com problemas de desenvolvimento e até mesmo indivíduos não humanos?). Se formos seguir o que o texto prescreve, devemos então desconsiderar os interesses dos vulneráveis pois sua função no mundo é ‘servir aos interesses dos mais aptos’, nem que seja como adubo.

O curioso é que o próprio autor admite que as condições de vida na natureza são horríveis, mas argumenta que como essas condições são de origem natural e podem ser descritas pela ciência, logo elas são circunstâncias boas para o todo (ecossistemas). Nosso amigo parece não compreender que ecossistemas e espécies não são seres conscientes. Devemos preservar ecossistemas de maneira que estes ofereçam a melhor condição possível de vida para todos que ali vivem, e não apenas preservar ecossistemas porque eles possuem valor em si. Preservar um ecossistema simplesmente porque ele é natural -e não porque ele fornece condições de vida para os animais – é o mesmo que defender que não podemos fazer uma reforma em nossa casa porque ela deve ser mantida em seu estado primordial, sem alterações.

Imagine a seguinte situação hipotética: prédios e casas como sendo o “ecossistema” humano. Faria sentido existir leis que concedessem direitos à casas e prédios, e que esses devem permanecer em um estado considerado primordial apenas porque “assim seria o correto”? Se o telhado da sua casa tivesse alguma goteira, você não poderia modificá-lo porque estaria, assim, alterando o ecossistema. O preço a pagar pela manutenção do ecossistema considerado ideal seria ter uma goteira em telhado, ocasionalmente sua casa inundada e sofrer com a ameaça constante de uma pane elétrica. Tudo isso porque sua casa possui direitos. Ela é moralmente considerada. Você não. A casa não te serve como abrigo, moradia e interação social. Não! Isso seria um absurdo! Você serve à manutenção de um suposto estado ideal dessa casa –mesmo que isso custe o seu bem-estar.

Nesse exemplo hipotético, podemos perceber o absurdo que trata essa visão. Os ecossistemas devem ser preservados às custas do bem-estar dos indivíduos conscientes porque a ciência da ecologia, que descreve o meio ambiente e os seres vivos que vivem nele, têm sua capacidade descritiva elevada ao status ético: tudo que pode ser descrito pela ciência é automaticamente, bom. Logo, toda ocorrência natural, mesmo que implique em piores condições para os indivíduos sencientes, deve ser não apenas mantida, mas encorajada.

É verdade que os animais evoluíram por milhares de anos para resistirem ao frio, ao calor, para correrem, para se camuflarem, etc. Mas é igualmente verdade que nem tudo que é natural vai acontecer em benefício deles. Se nós humanos, sofremos com doenças, com as intempéries, com a violência, por que o sofrimento suportado pelos animais selvagens seria de menor importância? Os animais silvestres não suportam essas condições porque “querem realizar sua natureza”. Eles vivem, sofrem e morrem de maneiras horríveis simplesmente porque não tem escolha; porque nós decidimos arbitrariamente que seu sofrimento não é tão importante quanto o nosso.

Nosso amigo passa algum tempo falando de questões como reintrodução de animais na natureza. Esse seria o grande “trunfo” de sua argumentação. Ora, se viver na natureza é tão bom assim, porque o ser humano, através de sua história, tentou –e ainda tenta- se libertar das amarras da natureza? Alguém gosta de fome, sede, doenças, ser vulnerável às intempéries, de viver em um ambiente hostil e violento? Claro que não. Não há razões para afirmarmos que os animais não humanos, seres com os quais partilhamos mais semelhanças que diferenças, não sejam capazes de sentir. Usando apenas as evidências científicas, podemos concluir que sentir envolve vantagens evolutivas aos indivíduos, como saber se comportar perante situações inesperadas e escapar de predadores. Parece que nosso amigo biólogo faltou justamente nessa aula durante seu curso de biologia.

E aí que entramos na questão: de que adianta a ciência descrever a realidade se não sabe interpretá-la? Descrever não é o mesmo que fazer julgamentos de valor (se algo é bom ou ruim). Se fôssemos levar à risca o que o texto propõe, não teríamos a medicina, por exemplo. O dever dos cientistas seria se restringir a descrever o corpo humano, não a procurar curas e tratamentos para doenças que nos prejudicam e nos fazem sofrer. Da mesma forma, a ecologia que o autor propõe se resume a descrever o que ocorre na natureza, com uma diferença: ele não se restringe a descrever as coisas, vai um passo adiante nessa nefasta caminhada: afirma categoricamente que ajudar é fazer mal “a um todo” que não é capaz de sentir ou de ser prejudicado. Como no exemplo hipotético que demos, a casa não pode ser alterada, mesmo que isso faça com que os seres humanos que vivem dentro dela pereçam. De maneira análoga, os ecossistemas devem ser preservados, mesmo que às custas do bem-estar dos animais.

A crença equivocada que a ciência é o único conhecimento verdadeiro que existe é parte desse problema. A ciência pode nos dar tanto maravilhas quanto pesadelos. Descrever como as coisas funcionam e aplicar esse conhecimento não é o mesmo que fazer o julgamento de valor: esse conhecimento deve ser usado? Se sim, para que? Como tal conhecimento pode beneficiar os seres conscientes? Tal conhecimento pode trazer danos e prejudicar alguém? O que fazer para evitar tal cenário? Parece que essas – e muitas outras questões – passam desapercebidas pela mente de nosso amigo biólogo, assim como da maioria da comunidade científica, que acredita que seu conhecimento e suas aplicações são neutras de valor e, portanto, estão blindadas contra qualquer oposição que não venha da própria ciência.

Que pena que não houve oposição suficiente às teorias científicas que afirmavam que certos seres humanos não eram pessoas de verdade, ou que o corpo das mulheres era defeituoso e inferior ao masculino por natureza. Que pena que certos humanos foram considerados descartáveis pela ciência de sua época. E que pena que não aprendemos com nossos erros, e estamos repetindo todos esses horrores com os animais não humanos, sejam eles domesticados ou selvagens.

 

O caso Filó é mesmo sobre a Filó?

Muitos acusam o tutor de Filó de explorá-la para ganhos econômicos. A questão do tutor ser um influencer não diz nada sobre o estado da capivara. Ela está bem cuidada? Tem uma boa qualidade de vida? Suas necessidades básicas estão sendo atendidas? Ao que parece, o tutor faz de tudo para que Filó tenha uma boa vida – muito melhor do que teria se estivesse na natureza. Não lhe faltam comida, cuidados médicos e atenção emocional. Logo, o fato dele ser um influencer não diz nada sobre como Filó está sendo tratada. O que diz isso são as atitudes do tutor, que parece se preocupar genuinamente com Filó e lhe prover uma boa vida.

Quanto ao fato do tutor de Filó estar dando “um mau exemplo ao incentivar outras pessoas a adotar animais silvestres como pets”, esse é um salto lógico que não se comprova na prática. É o mesmo tipo de salto que se dá quando algumas pessoas afirmam que “a internet causa violência”. A violência já existia antes da TV, do rádio e da internet. Não há nada que comprove que esses meios criaram a violência. Elas são apenas mais uma plataforma para que o ódio e a violência se espalhe. O caso de Filó se apresenta da mesma forma: não existe relação direta entre exposição de animais nas redes sociais e a preferência das pessoas por esses animais. Sim, você pode comprovar uma correlação, mas é importante ressaltar que essa correlação só aponta para fatores que são anteriores às redes sociais: humanos sempre tiveram e sempre terão preferências por determinados animais. A capivara, por não temer contato com humanos, ser dócil e ser constantemente avistada nas cidades sempre foi alvo da empatia humana. Essa preferência pré-data a exposição de animais nas redes sociais.

 

Importante ressaltar que as redes também podem ser usadas no sentido inverso, desde a denúncia de maus-tratos até a exposição de como a vida dos animais na natureza é cheia de dor e sofrimento.

Quanto ao IBAMA estar cumprindo a lei, de fato, ele está cumprindo a lei. Mas é importante ressaltar alguns aspectos:

  • A lei não está gravada na pedra. Isso significa que ela está sujeita a interpretação. A lei é um guia de como agir. Não devemos matar, entretanto a lei cobre situações onde matar se configura um ato justificado. A lei está sujeita a interpretação de acordo com o caso (por isso existem juízes para atuas, e não um software que aplica a lei, literalmente);
  • Nem tudo que é legal é ético. Na Alemanha nazista, era perfeitamente legal a discriminação contra os judeus. Isso não torna tal discriminação ética. A lei que o IBAMA segue é, em sua essência, especista, pois os animais não são indivíduos cujos interesses devem ser respeitados. Os animais são meras peças que cumprem uma função dentro do ecossistema. Se os humanos fossem tratados da mesma forma, seria permissível matar milhões de humanos para que se fizesse ‘controle populacional’;
  • Como seguidor de um arcabouço jurídico especista, o IBAMA não leva em conta os interesses dos animais enquanto indivíduos. Na prática, isso significa que este órgão pode tomar ações cruéis, tais como apreender gambás e ao invés de ajudá-los a retornar ao seu habitat, servir esses animais como ‘presas vivas’ para predadores como cobras, por exemplo. Essa é uma –das inúmeras- práticas corriqueiras adotadas pelo IBAMA.

Quanto às difíceis condições que os animais enfrentam diariamente na natureza, apenas uma mudança legislativa não fará diferença significativa. Devemos divulgar valores antiespecistas para o maior número possível de pessoas, para que a situação dos animais na natureza seja mudada. Destacamos que quanto mais antiespecista for a sociedade, mais os interesses do seres sencientes serão considerados.

Veganismo é sobre os animais

 

 

Veganismo é sobre os animais

Evocar razões como saúde, meio ambiente ou sistemas políticos é um desrespeito perante seu sofrimento. Tais atitudes apenas mostram quão pouco os animais são considerados.

Samanta Luz, influencer e apresentadora, atingiu outros níveis de notoriedade nos últimos dias. O motivo? Ela se declarou ex-vegana, após dez anos ‘dedicada a causa’.

A apresentadora, em vídeos e posts no Instagram,  declarou que irá continuar seguindo uma dieta vegana, mas que no momento ‘não se identifica mais com o veganismo’ pois ele teria se tornado ‘branco e elitista’.

A apresentadora teria ficado irada com um selo de “Produto Vegano’ concedido a um miojo (macarrão instantâneo) da marca Nissei. Conforme a apresentadora, isso seria um absurdo, pois miojo é um produto industrializado e que faz mal à saúde humana. Tais características seriam ‘incompatíveis’ com o veganismo.

A influencer ainda afirmou que o termo ‘veganismo’ não faz mais sentido para ela, pois não foi um termo cunhado por ‘pessoas pretas’. Além disso, ela não quer ‘ser rotulada’, nem mesmo como vegana.

Focando exclusivamente das declarações feitas por Samanta, fica fácil compreender o motivo de sua suposta ira: ela, assim como muitas outras pessoas, possuem um entendimento equivocado do que é o veganismo.

A própria Samanta argumenta que veganismo não é uma mera dieta, e sim uma causa, para mais tarde contradizer-se, afirmando que veganismo é ‘um estilo de vida’. Ora, veganismo não é sobre saúde humana, sobre o meio ambiente, sobre as problemas causados pelo sistema político e econômico. Veganismo, enquanto luta antiespecista, é a luta contra a discriminação injustificada sofrida pelos animais não humanos. E aí incluem-se –mas não se limitam– a exploração animal.

Infelizmente, o termo veganismo está sendo cooptado por outras causas e usado como um fantoche apenas para trazer mais adeptos à essas causas. Causas como as lutas contra o racismo, contra o sexismo, contra a homofobia, contra a transfobia, contra a pobreza, contra a desigualdade social e a luta de classes são causas legítimas que possuem mérito próprio. Ninguém, em sã consciência, argumentaria que vivemos em um mundo onde todos recebem a igual consideração moral. Tais causas devem estar em pauta e devemos sim fazer todo o esforço possível para vivermos em um mundo melhor. E é exatamente disso que trata o veganismo: dar voz àqueles que não a possuem –ou que não possuem a voz ‘certa’ para que sejam ouvidos. Os animais, de longe, são os seres com as piores condições de vida nessa planeta, sejam eles domesticados ou selvagens.

Em suas declarações, a influencer comete o equívoco de confundir veganismo com identitarismo. Reclamar que um termo não é ‘preto’ não significa lutar contra o racismo. Quem quer lutar contra o racismo irá se engajar em causas que realmente mudarão a vida da população negra no Brasil: lutar contra a desigualdade social que assola o país é uma maneira muito mais honesta de diminuir a distância entre pretos e brancos que travar batalhas pífias e imaginárias contra ‘palavras de origem branca’. Se formos seguir a risca as orientações de Samanta, ficaremos sem palavras na Língua Portuguesa para nos comunicarmos. Qualquer palavra que algum dia foi usada contra alguma minoria deverá ser automaticamente banida, ou pior, criminalizada. Chegaremos ao mundo descrito por George Orwell em 1984 (um autor branco!) onde não existirão mais palavras ou conceitos, logo, não poderemos exprimir algo que não possui nome. Ora, só sabemos o que é racismo porque existem palavras como ‘racismo’, assim como sabemos o que é especismo porque sabemos o quão horrível é a vida da esmagadora maioria dos animais. Como sabemos disso? Por causa de expressões como ‘carne’ ao invés de ‘cadáver’. No caso do racismo, só sabemos identificar que existe tal situação exatamente pela análise de palavras dentro de determinado contexto. Se ‘neguinho’ é racista em uma situação, pode muito bem ser uma forma de apreço em outra. Ter que discutir essa questão tão básica em pleno século XXI é uma comprovação do retrocesso em que vivemos.

Caros veganos do mundo: o que importa é vocês serem veganos pela defesa dos animais. Argumentar qualquer outro benefício, como saúde, meio ambiente ou questões econômicas, é um desrespeito ao sofrimento incomensurável pelos animais. Como vocês se sentiriam se fosse defendido: vamos ser antirracistas pelo benefício econômico que isso trará? Ou: vamos defender os direitos de igualdade entre gêneros porque essa situação nos beneficiará no futuro? Se você acha tais defesas hediondas e desrespeitosas, mas não acha a defesa do veganismo pela saúde, pelo meio ambiente ou por um sistema econômico mais justo igualmente ofensiva, então sinto te informar, você é especista. Você só está defendendo as causas que mais lhe agradam e usando o veganismo para trazer mais pessoas para seu lado.

Não existe defesa ‘preta’ ou ‘branca’ dos animais, pois todos nós, enquanto seres humanos, exploramos e ignoramos os animais. Para o animal, pouco importa se quem o explora é um preto, um branco ou um marciano verde. Ele sofrerá da mesma forma, seja qual for a cor de seu algoz.

O que é ética animal?

O que é ética animal?

por Luciano Carlos Cunha[1]

Introdução

             A ética trata de como deveríamos agir e por quê. Assim, a ética animal discute como deveríamos agir (e por que) quando nossas decisões afetam os animais não humanos. A seguir está um breve resumo do tópico central discutido em ética animal: a questão do especismo.

 

A situação típica dos animais

Os animais não humanos sofrem e morrem sendo explorados nos mais diversos setores: para a fabricação de produtos alimentícios, em experimentos, vestuário, entretenimento, transporte, como trabalhadores etc. Os animais criados para consumo normalmente passam por sofrimento intenso durante toda a vida. Por exemplo, muitos deles são amontoados em uma única gaiola, sem nunca poderem se mover durante toda a vida, sofrem com inúmeras doenças e tem de se deitar por cima de seus excrementos. Além disso, independentemente de terem sido criados sob condições intensivas ou nas chamadas fazendas de criação livre, os animais são mortos geralmente por métodos que causam enorme sofrimento (não é incomum que sejam escaldados, esquartejados ou tenham sua pele arrancada quando ainda estão plenamente conscientes[2]), além de sofrerem muito no transporte até os matadouros. Além do sofrimento, há também o dano da morte: literalmente vários trilhões de animais não humanos morrem todos os anos, somente para consumo[3]. Isso significa que a quantidade de animais morta mundialmente por dia já é maior do que a população humana mundial. Como as vítimas são animais não humanos, tal situação não é normalmente vista como um problema pela maioria das pessoas (é normalmente vista como um problema apenas se afetar indiretamente os interesses humanos ou ameaçar a preservação do meio ambiente).

A situação típica dos animais que estão na natureza também é altamente negativa. Muitos dos danos dos quais padecem são resultados diretos ou indiretos de práticas humanas. Entretanto, independentemente de ação humana, os processos naturais já os prejudicam em alto grau. São rotineiramente vítimas de desastres naturais, condições meteorológicas hostis, doenças, fome, sede etc.[4]. Além disso, a maneira como acontece a dinâmica de populações tende a maximizar a quantidade de animais que nasce apenas para sofrer e morrer de modo bastante prematuro. Isso ocorre porque a maior parte das espécies de animais se reproduz maximizando a quantidade de filhotes (algo comum em répteis, anfíbios, peixes e em invertebrados em geral), que vão desde milhares até muitos milhões por ninhada, dependendo da espécie. Em períodos de aproximada constância populacional, em média sobrevivem até à idade adulta apenas 2 filhotes de cada ninhada. Todo o restante nasce geralmente apenas para experimentar sofrimento intenso e morrer, sem nunca ter tido nenhuma experiência positiva[5]. Ainda que atualmente não se saiba como prevenir vários desses danos, há muito que já poderia ser feito para ajudar esses animais em muitos casos[6] e muito mais poderia ser pesquisado[7]. Entretanto, novamente, por se tratar do sofrimento e das mortes de animais não humanos, a maior parte das pessoas, ou não vê isso como um problema relevante, ou vê como um problema relevante apenas se afetar indiretamente os interesses humanos ou as metas ambientalistas, como a preservação da biodiversidade ou do equilíbrio ecológico. O bem dos próprios animais não é normalmente visto como importante em si.

 

O especismo: dois pesos e duas medida, dependendo da espécie dos afetados

Como vimos, o uso de animais não humanos como recursos é amplamente aceito e praticado. Entretanto, fazer o mesmo com humanos é amplamente considerado inaceitável. Por exemplo, se humanos estivessem a ser criados e mortos para serem transformados em comida, dificilmente seria dito que as razões para sermos vegetarianos tem a ver com a preocupação com a própria saúde ou com o meio ambiente. Em vez disso, seria reconhecido que a injustiça que as vítimas sofrem é uma razão suficiente para tal. Porém, como as vítimas reais são animais não humanos, o discurso é o oposto: a preocupação com os animais é colocada em último lugar (quando aparece), atrás da preocupação com os interesses humanos e das metas ambientalistas – atitude que é por vezes reproduzida, inclusive, dentro do ativismo da causa animal.

Vimos também que os animais na natureza padecem de enorme sofrimento e mortalidade que poderiam em muitos casos serem evitados, mas normalmente escolhe-se não ajudá-los. Entretanto, se as vítimas fossem humanas, seria amplamente considerado importante ajudá-los (por preocupação com o próprio bem das vítimas, e não por uma preocupação indireta ambientalista).

Esses dois tipos de situações evidenciam que a maior parte das pessoas se baseia em um padrão moral duplo, dependendo de se as vítimas pertencem ou não à espécie humana. É possível justificar essa disparidade ou trata-se de uma forma de discriminação contra quem não pertence a certa espécie (que vem sendo chamada de especismo[8], por analogia ao racismo)?

 

É possível justificar um tratamento privilegiado a humanos?

Várias tem sido as tentativas de justificar essa disparidade. A principal delas aponta que os animais não humanos carecem de certas capacidades ou relações (como capacidades cognitivas complexas, um senso de justiça, o entendimento do que são direitos, uma linguagem, a capacidade de contribuírem para a sociedade, relações de reciprocidade, terem poder suficiente para defenderem a si próprios etc.). Entretanto, seja lá qual for a capacidade ou relação escolhida, há uma enorme quantidade de humanos que também não as possui: bebês, crianças até certa idade, vítimas de certos acidentes ou doenças que afetam as capacidades cognitivas etc. Muitos desses humanos sequer têm o potencial para vir a desenvolver essas capacidades, já que sua condição é irreversível. Entretanto, se a falta dessas capacidades ou relações nesses humanos não pode justificar tratá-los pior (muito menos poderia justificar fazer a eles o que é rotineiramente feito aos animais não humanos), então a falta dessas capacidades ou relações nos animais não humanos não poderia justificar tratá-los pior do que os humanos (muito menos poderia justificar o que é feito rotineiramente a eles[9]). Aliás, a falta dessas capacidades ou relações naqueles humanos é normalmente vista como uma razão para dar-lhes um cuidado ainda maior, e não para causar-lhes sofrimento ou a morte. Então, a falta dessas capacidades ou relações nos animais não humanos é, igualmente, uma razão para lhes dar um cuidado ainda maior, e não para justificar prejudicá-los.

Há autores que defendem que, mesmo que não possuam essas capacidades, aqueles humanos devem ser respeitados, pois pertencem à espécie humana, ao passo que os animais não humanos devem ser excluídos porque não possuem aquelas capacidades[10]. Mas, perceba que esse argumento já assume de antemão aquilo que visa provar: primeiro tenta justificar o critério da espécie apontando que ele revela quem possui ou não certas capacidades ou relações, e depois utiliza o próprio critério da espécie para dizer quando o critério das capacidades e relações deve ser utilizado ou não.

 

A importância da senciência

Saber quem possui capacidades cognitivas complexas é certamente relevante para saber quem deve ser responsabilizado. É por isso que um adulto normal é responsabilizável e um bebê não é. Mas, isso não implica que também seja relevante para saber quem deveria ser respeitado. Alguém precisa de respeito porque é passível de ser prejudicado e beneficiado, e não porque possui capacidades cognitivas complexas[11]. É por essa razão que a senciência (a capacidade de ter experiências) é relevante para saber quem devemos respeitar, pois determina: (1) quais seres são alguém (e não, meramente, algo) e (2) quais seres são capazes de ser prejudicados e beneficiados (uma vez que as experiências são experimentadas como positivas ou negativas). É por essa razão que os animais não humanos precisam de consideração. Não é porque pertencem ao reino animal, ou porque estão vivos em um sentido biológico (como estão as plantas, por exemplo). É simplesmente porque são passíveis de serem prejudicados com a presença de estados mentais negativos (todas as formas de sofrimento, físico ou psicológico) ou com a ausência de estados mentais positivos (que acontece quando morrem, por exemplo).

Se temos razões para considerar moralmente alguém porque ele é passível de ser prejudicado e beneficiado, então, a força dessas razões depende da magnitude dos prejuízos e benefícios em jogo, e não da espécie a qual pertence ou de suas capacidades ou relações. Isso sugere então que não apenas não há justificativa para excluir os animais não humanos da esfera de consideração moral: também não há justificativa para dar-lhes uma consideração menor[12]. Em uma abordagem não tendenciosa, prejuízos e benefícios de magnitude similar recebem o mesmo peso, independentemente da espécie, raça, gênero, capacidades, relações etc. de quem receberia esses prejuízos ou benefícios. É por essa razão que o especismo é análogo ao racismo: ambos violam esse princípio e, por isso, são formas de discriminação.

 

Testando se uma atitude é ou não especista

Há algumas perguntas muito simples que sempre podemos fazer para testarmos se estamos sendo ou não tendenciosos contra os animais não humanos. Por exemplo, podemos perguntar se consideraríamos a atitude em questão justa[13]: (1) se não soubéssemos a espécie dos que seriam prejudicados e dos que seriam beneficiados por ela; (2) se não soubéssemos a espécie a qual pertencemos; (3) se suas vítimas fossem humanas, padecendo de danos de mesma magnitude; (4) se os papéis fossem invertidos (por exemplo, se os beneficiários fossem animais não humanos, e os prejudicados fossem humanos); (5) se tivéssemos que receber os prejuízos que ela causa para poder alcançar os benefícios obtidos por ela.

Ao que parece, sob tais condições, aquilo que é feito atualmente aos animais não humanos (sua exploração e a negligência em receberem ajuda) seria amplamente considerado injusto, ou mesmo hediondo. Parece também que, sob tais condições, rejeitaríamos dar graus diferenciados de consideração moral dependendo da espécie a qual um ser senciente pertence ou de suas capacidades. Isso tudo parece indicar não apenas que não há justificativa para aquilo que é feito aos animais não humanos, mas que também devemos fazer algo para tentar mudar essa situação.

 

Referências

ANIMAL ETHICS. Introduction to wild animal suffering: A guide to the issues. Oakland: Animal Ethics, 2020.

 

CUNHA, L. C. Razões para ajudar: o sofrimento dos animais selvagens e suas implicações éticas. Curitiba: Appris, 2022.

 

CUNHA, L. C. Uma breve introdução à ética animal: desde as questões clássicas até o que vem sendo discutido atualmente. Curitiba: Appris, 2021a.

 

EHNERT, J. The argument from species overlap. Blacksburg: Virginia Polytechnic Institute and State University, 2002.

 

FISHCOUNT. Fishcount estimates of numbers of individuals killed in (FAO) reported fishery production. Fishcount: Reducing suffering in fisheries, 2019. Disponível em: http://fishcount.org.uk/studydatascreens/2016/fishcount_estimates_list.php. Acesso em: 24 ago. 2021.

 

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SCRUTON, R. Animal rights and wrongs. London: Metro, 1996.

 

SINGER, P. Ética Prática. 3 ed. Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

Notas

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral no Brasil das atividades da ONG Ética Animal (www.animal-ethics.org/pt).

[2] Para uma descrição detalhada do sofrimento dos animais explorados, ver Horta (2017, p. 65-98).

[3] Para estatísticas, ver Fishcount (2019), Our World in Data (2018), Rowe (2020a, 2020b, 2021) e Schukraft (2019).

[4] Ver Animal Ethics (2021, p. 8-59) e Cunha (2022, p. 19-34).

[5] Sobre isso, ver Horta (2010) e Animal Ethics (2021, p. 55-59).

[6] Ver Animal Ethics (2021, p. 60-85), Cunha (2022, p. 280-284).

[7] Ver Animal Ethics (2021, p. 136-182).

[8] Sobre a definição de especismo, ver Horta (2022 [2010]) e Horta e Albersmeier (2020).

[9] Esse argumento é discutido em detalhes em Ehnert (2002).

[10] Ver, por exemplo e Scruton (1996, p. 54-55).

[11] Esse argumento é desenvolvido em mais detalhes em Horta (2018) e Cunha (2021, p. 57-61).

[12] Para uma explicação mais detalhada sobre esse princípio, ver Singer (2002, cap. 3) e Cunha (2021, p. 61-66)

[13] Um método similar é sugerido por Rowlands (2009 [1998], p. 118-175).

Por que a senciência e não a vida?

 

Por que a senciência e não a vida?

 

            Luciano Carlos Cunha[1]

  Indira de Freitas Nimer[2]

 

 

Os seres sencientes são aqueles seres capazes de ter experiências. Possuem uma perspectiva de primeira pessoa – isto é, não são meros corpos vazios. Faz sentido perguntar: “como será que é ser um peixe?”. Por outro lado, não parece fazer sentido perguntar: “como será que é ser um sapato?”. Isso é assim porque o peixe é senciente e o sapato não é.

Por vezes é dito que respeitar todos os seres sencientes é apenas um primeiro passo, pois o ideal mesmo é respeitar tudo o que é vivo. A seguir apresentaremos algumas razões para defender que o critério da senciência é o critério adequado de consideração moral, e não o critério da vida.

Algumas pessoas adotam o critério da vida porque acreditam que a senciência diz respeito somente ao sofrimento. Essas pessoas afirmam que, se o que importasse fosse a senciência, e não a vida, então não haveria nada de errado em matar os animais, desde que de maneira indolor. No entanto, esse entendimento é equivocado. A senciência diz respeito a todas as experiências, não apenas as negativas. Portanto, o sofrimento não é a única forma pela qual os seres sencientes são prejudicados. A ausência de experiências positivas também caracteriza uma forma de prejuízo. É exatamente por essa razão que a morte é um dano. A morte prejudica alguém não porque faz com que perca sua vida biológica, mas porque impede que desfrute das experiências positivas que teria caso continuasse vivo. Tanto é assim que uma vida meramente biológica – sem possibilidade alguma de ter experiências ou de voltar a tê-las, nem mesmo sonhos ou pensamentos – seria exatamente o mesmo que morrer. Em resumo, a explicação de por que a morte é um dano depende exatamente da senciência.

Já outras pessoas pensam que o adequado é respeitar tudo o que é vivo porque acreditam que todas as coisas vivas não sencientes são passíveis de serem prejudicadas. Mas é difícil imaginar como isso seria possível. Em primeiro lugar, é a senciência que determina se certa entidade é alguém e não algo. É o que indica que se, naquele corpo, há alguém capaz de experimentar o mundo – isto é, que não é um corpo vazio. Coisas vivas não sencientes, por outro lado, são literalmente corpos vazios. Não há ninguém ali para sentir coisa alguma. Portanto, não há ali alguém que seria possível prejudicar ou beneficiar. Em segundo lugar, o fato de as experiências serem experimentadas como positivas ou negativas é o que torna possível que os seres sencientes sejam prejudicados ou beneficiados – é o que faz com que prefiram certas coisas em vez de outras. Novamente, é difícil imaginar como é possível organismos vivos não sencientes serem literalmente prejudicados. Já que não experimentam certas coisas como positivas e outras como negativas (pois não experimentam nada – não há alguém ali para experimentar as coisas), não possuem uma preferência por se encontrarem nesse ou naquele estado.

Outro problema com o critério da vida é que, além de considerar seres que não são passíveis de serem prejudicados, excluiria certos seres passíveis de serem prejudicados. Até o momento, todos os seres sencientes são também seres vivos (ainda que, como vimos, há muitos seres vivos que não são sencientes). Mas é possível que no futuro haja seres sencientes que não serão biológicos. Se a senciência aparecer toda vez que certas condições estiverem presentes (ainda que atualmente não se saiba ao certo quais são essas condições) então é possível que no futuro surjam seres sencientes em meios digitais. Por exemplo, a presença de um sistema nervoso com um órgão centralizador (como um cérebro, por exemplo) parece desempenhar uma função tal que cria as condições para o aparecimento da senciência. Mas, é possível que a senciência apareça toda vez que a matéria estiver organizada de modo a desempenhar a mesma função, independentemente do tipo de substrato em que acontece – e não apenas nos seres cujo corpo é feito de carbono (isto é, os seres vivos).

O ponto é: se pensarmos que devemos consideração moral apenas a entidades vivas, então não daremos consideração moral aos seres que, apesar de serem igualmente capazes de sofrer e desfrutar, não serão organismos biológicos. Seria feito a eles todas as coisas horríveis que são feitas atualmente aos animais não humanos. Por outro lado, se nossa preocupação for com todos os seres passíveis de serem prejudicados e beneficiados, então daremos a todos os seres sencientes o mesmo grau de consideração moral, independentemente de serem biológicos ou não biológicos. Isto é, se o que nos importa é evitar prejudicar e buscar beneficiar, então rejeitaremos não apenas o especismo, mas também o substratismo.

Por tudo o que foi apontado, se o que importa para saber quem devemos respeitar é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado, então parece que temos fortes razões para adotar o critério da senciência, e não o critério da vida.

 

 

[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org

[2] Bacharelanda em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Contato: indiranimer.eticaanimal@gmail.com

 

Especismo e priorização de causas

Especismo e priorização de causas

Autor:

Luciano Carlos Cunha[1]

 

 

  1. A acusação de que defensores dos animais seriam especistas “anti-humanos”

 

Os defensores dos animais são frequentemente criticados por lutarem pelos animais não humanos enquanto há ainda humanos necessitando de ajuda. Essa crítica tradicionalmente era feita por quem defendia declaradamente uma posição antropocêntrica[2]. Entretanto, uma crítica similar por vezes tem sido feita por quem afirma dar igual consideração aos animais não humanos. Segundo essa nova crítica, os defensores dos animais estão justificados a lutar pelos animais, mas apenas se lutarem simultaneamente por causas humanas[3].

A partir da década de 1970 um número cada vez mais crescente de autores[4] questionou a pressuposição de que o bem dos humanos deveria ter um peso maior, observando o quão arbitrário é dar peso diferenciado a níveis equivalentes de prejuízos e benefícios, dependendo da espécie dos indivíduos. Foi então criado o conceito de especismo[5], para fazer uma analogia com o racismo. Rejeitar o especismo implica aceitar que a força das razões para evitar prejudicar e para buscar beneficiar deve depender da magnitude dos prejuízos e benefícios, e não da espécie dos afetados[6].

A forma mais comum de especismo é a antropocêntrica[7], que desfavorece quem não pertence à espécie humana. É por causa do especismo antropocêntrico que os animais não humanos são explorados para os mais diversos fins, onde geralmente levam uma vida de intenso sofrimento[8] e literalmente vários trilhões deles são mortos a cada ano mundialmente[9]. Esse é também o motivo pelo qual os animais não humanos normalmente não recebem ajuda quando afetados por processos naturais como fome, sede, doenças e desastres naturais[10] Em resumo, é devido ao especismo antropocêntrico que os animais não humanos passam por situações terríveis que jamais seriam consideradas aceitáveis se as vítimas fossem humanas.

Cada vez mais pessoas e grupos de ativismo têm se autoproclamado antiespecistas[11]. Entretanto, algumas dessas pessoas e grupos afirmam que têm se dedicado a combater o especismo dos próprios defensores dos animais. No entender dessas pessoas, os defensores dos animais seriam especistas “anti-humanos” por não se dedicarem simultaneamente para causas humanas[12]. Curiosamente, enquanto antes quem criticava os defensores dos animais com afirmações como “por que se preocupar com animais enquanto há humanos precisando de ajuda?” era quem defendida abertamente o antropocentrismo, agora quem faz uma crítica similar, afirmando que os defensores dos animais só podem defender os animais se também lutarem por causas humanas, são pessoas que afirmam que rejeitam o especismo.

Neste artigo defenderei que a acusação de que os defensores dos animais são especistas “anti-humanos” surge de um entendimento completamente equivocado do que é o especismo. Importante: o que defenderei não é que é impossível existir especismo “anti-humanos”, e sim, que se dedicar integralmente para a causa animal não é uma atitude desse tipo. Defenderei também que, para alguém considerar errado priorizar defender os animais não humanos, precisa ter uma postura especista antropocêntrica.

 

  1. Por que a acusação parte de um entendimento equivocado do que é especismo

 

A  acusação de que os defensores dos animais estariam a ser especistas “anti-humanos” por não se dedicarem simultaneamente a lutar por causas humanas surge de um entendimento equivocado do que é o especismo. O especismo é uma discriminação contra indivíduos, não contra causas. Alguém é especista se dá um peso maior ou menor a níveis de prejuízos e benefícios similares em indivíduos de espécies distintas. Isto é, rejeitar o especismo requer dar peso igual ao bem de cada ser senciente, independentemente de espécie. Entretanto, disso não se segue que todas as causas são igualmente importantes. Pelo contrário. Diferentes causas lidam com problemas que afetam quantidades de vítimas diferentes, que estão padecendo de sofrimentos de diferentes magnitudes, apresentam taxas de mortalidade diferentes, etc. Além disso as diferentes causas são causas negligenciadas em maior ou menor grau (seja em termos do número de ativistas, seja em termos da quantidade de recursos).

É por essa razão que quem se dedica integralmente para a causa animal não está a ser especista. Pelo contrário: como veremos nos próximos itens, é exatamente isso o que concluiríamos se não soubéssemos a espécie dos afetados. Imaginemos que rejeitamos o especismo e nos preocupamos em mesma medida com cada um dos seres sencientes afetados por nossa decisão. Em quais critérios poderíamos nos basear para escolher quais causas priorizar? Uma estrutura bastante utilizada nesse sentido é a que junta três critérios[13]: escala de dano (quanto mais grave o problema, maior a prioridade – normalmente medida em termos da quantidade de vítimas e da gravidade da situação das vítimas), grau de negligência (quanto mais negligenciado o problema, maior a prioridade) e grau de tratabilidade (quanto mais tratável, maior a prioridade). A seguir, avaliaremos o problema que a causa animal lida de acordo com esses critérios, comparando com a situação humana.

 

  1. A quantidade de vítimas

 

Contabilizando as mortes de vertebrados e invertebrados, terrestres e aquáticos, a exploração animal mata anualmente algo entre 9 e 25 trilhões de animais não humanos[14]. Observe que esse número diz respeito somente às mortes de animais na exploração. Não estão computadas as que são resultado indireto de atividades humanas nem as que resultam de doenças, sede, fome, desastres naturais etc. Já as mortes anuais de humanos (somando-se todas as causas, incluindo causas naturais) é estimada em 55,3 milhões[15]. A diferença entre esses números é tão gigantesca que a maioria de nós tem dificuldade em visualizá-la. Para efeito de argumentação, deixemos de lado a quantidade de invertebrados terrestres mortos e computemos apenas a quantidade de mamíferos, aves, peixes e outros animais aquáticos mortos anualmente: cerca de 3 trilhões[16]. Só essa quantia já significa que são mortos por dia mais de 8 bilhões de animais não humanos. Isto é: somente na exploração animal, por dia morre uma quantidade maior de animais não humanos do que a população humana mundial. Se adicionarmos os invertebrados terrestres, a quantia é gigantescamente maior.

Além disso, há as mortes de animais que vivem fora do controle direto humano (como os animais que estão na natureza). Esses animais por vezes sofrem e morrem por conta de fatores parcialmente antropogênicos, mas quantidades literalmente astronômicas desses animais possuem vidas repletas de sofrimento e morrem prematuramente já por conta dos próprios processos naturais (doenças, fome, sede, desastres naturais etc.)[17]. Um fator crucial para esse resultado é o fato de a maioria das espécies de animais se reproduzir maximizando a quantidade de filhotes, sendo que a vasta maioria morre logo após o nascimento. Em ninhadas que variam de milhares a milhões de filhotes (algo comum em anfíbios, répteis, peixes e invertebrados em geral), em populações estáveis a média de sobreviventes por ninhada é apenas de dois indivíduos. Todo o restante normalmente nasce apenas para experimentar sofrimento e morrer logo em seguida[18]. Não há estatísticas sobre essa quantidade de mortes mas sabe-se, por exemplo, que a quantidade total de animais sencientes na natureza em um dado momento está entre 1 e 10 quintilhões de indivíduos[19]. Isso significa que, se compararmos a população de animais não humanos com a população humana em um dado momento, e fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos (todo o restante seriam animais não humanos).

 

  1. A gravidade da situação das vítimas

 

A vasta maioria dos animais não humanos nasce, ou na exploração animal ou na natureza. Em ambos os casos, a norma é nascerem para ter vidas repletas de sofrimento (em boa parte dos casos, sem nunca ter experiência positiva alguma) e para terem uma morte bastante prematura, geralmente extremamente dolorosa. É claro, existem humanos que têm vidas repletas de sofrimento, morrem prematuramente e que tem mortes muito dolorosas. Entretanto, a norma na vida humana não é que nasçam, por exemplo, sofrendo o que equivalente ao que sofrem os animais não humanos explorados ou que estão na natureza.

Peguemos como exemplo a situação dos animais usados para consumo[20]. As fazendas industriais estão organizadas para criar o maior número possível de animais no menor espaço possível e com o menor custo possível. A maioria dos animais não têm espaço algum para se mover. Muitos nem conseguem se virar. Vivem em pisos de concreto ou em grades, continuamente sobre os seus excrementos, o que lhes ocasiona várias doenças e ferimentos. As galinhas poedeiras, por exemplo, vivem amontoadas em gaiolas superlotadas, em um espaço do tamanho de uma folha de papel[21]. Permanecem de pé a vida inteira sobre os arames das gaiolas. Em alguns casos, seus pés ficam presos na malha metálica e, ao serem retiradas para serem encaminhadas ao matadouro, suas pernas quebram e uma parte delas é arrancada. Os frangos criados para a produção de carne foram geneticamente selecionados para crescerem muito rapidamente[22]. Suas pernas não suportam seu peso, o que lhes causa lesões e dor, sendo que vários nem conseguem ficar de pé. Dadas as condições de superlotação, nas fazendas as doenças podem se espalhar rapidamente, dando origem a epidemias. Quando isso acontece, é comum a matança em massa de animais, incluindo dos saudáveis, mesmo quando é possível tratá-los (pois isso é mais caro do que matá-los e substituí-los por novos). Isso geralmente é feito enterrando os animais vivos e cobrindo-os com cal virgem[23].

As porcas exploradas para fins de reprodução ficam quatro meses confinadas em minúsculas caixas de metal com piso de ripas. Elas não podem nem mesmo se virar, e só podem se deitar ou se levantar com grande dificuldade[24]. Seus músculos e articulações são gravemente lesionados e elas literalmente enlouquecem por nunca poderem se mover. Quando os leitões são desmamados (a partir de três semanas de idade) elas são novamente engravidadas e o ciclo recomeça até que tenham três anos, quando são então mortas.

As vacas só produzem leite após darem à luz. Por isso, são engravidadas continuamente, geralmente por inseminação artificial. Os produtores não querem que os bezerros bebam o leite, pois diminuiria os lucros. Então, mães e bebês são separados logo após o nascimento, o que é terrivelmente traumático para ambos, que choram e gritam por vários dias. As vacas são ordenhadas por 10 meses após serem separadas de seus  bebês. Depois são engravidadas novamente e o ciclo é repetido até que estejam completamente exaustas, e são então mortas.

Os bezerros usados para produzir “vitela” vivem em gaiolas minúsculas nas quais nem mesmo podem se virar. Suas cabeças são imobilizadas para que não possam exercitar seus músculos, com o objetivo de tornar sua carne o mais macia possível. Por isso, são alimentados com fórmulas com baixo teor nutricional, tornando-os tão fracos que nem mesmo conseguem andar quando são enviados para serem mortos[25]. Já os filhotes machos de galinhas poedeiras não são criados para serem comidos, pois não cresceriam tão rápido quanto aqueles selecionados para esse fim. São então jogados em uma máquina de trituração ou em uma lata de lixo, onde morrem asfixiados ou esmagados pelos outros filhotes jogados sobre deles.

As galinhas têm seus bicos cortados com lâminas quentes. Os leitões têm seus dentes arrancados e as caudas cortadas. Os bois e touros tem seus chifres serrados ou queimados com produtos cáusticos. Todos os mamíferos são marcados com ferros quentes e têm arrancados pedaços de seus corpos (como partes das orelhas). Tudo isso é feito sem analgésicos ou anestesia, pois custaria dinheiro sem aumento na produtividade.

No transporte até o matadouro, são colocados nos caminhões usando espetos, martelos e bastões que dão choques elétricos. As aves são içadas como se fossem coisas, geralmente segurando-as pelas pernas e jogando-as nas gaiolas, o que faz com que muitas vezes tenham pernas e ossos quebrados[26]. As condições de superlotação nos caminhões são piores até mesmo  do que nas fazendas. Além disso, são expostos ao calor ou frio extremos e não recebem nenhuma comida ou água, pois fazê-lo não seria lucrativo. Vários animais morrem antes de chegarem ao seu destino, o que mostra o quanto sofreram[27].

Chegando no abatedouro, recebem golpes com estacas para que se movam pelos corredores. Quando não conseguem andar, são arrastados com ganchos cravados em diferentes partes dos seus corpos, que por vezes rasgam essas partes. Além disso, podem ver e ouvir outros animais sendo mortos e sentir o cheiro de seu sangue. Depois de serem atordoados são acorrentados pelas pernas e içados do chão, o que por vezes quebra suas pernas. Entretanto, como as filas de animais nos matadouros precisam se mover rapidamente, esse processo é feito em alta velocidade, e então é comum que os animais não fiquem atordoados e estejam plenamente conscientes ao serem esfaqueados. Além disso, muitas vezes o esfaqueamento não os mata, e então são esquartejados, fatiados, tem a pele arrancada ou são fervidos enquanto ainda estão totalmente conscientes[28]. Esse destino aguarda todos os animais usados na alimentação, independentemente de terem sido criados em fazendas industriais ou em fazendas “de criação livre”.

Na pesca, o anzol perfura a boca ou outras partes do corpo e, ao arrastar o peixe para fora da água, puxa todo o peso de seu corpo, perfurando de modo cada vez mais profundo e rasgando cada vez mais a parte do corpo onde foi cravado[29]. As formas mais comuns pelas quais os animais pescados morrem são[30]: porque seus órgãos internos explodem devido à descompressão;  sufocamento; tendo seus corpos cortados enquanto ainda estão conscientes; esmagamento devido ao peso dos outros animais empilhados ou presos nas redes; golpes na cabeça; eletrocussão; hipotermia; envenenamento por dióxido de carbono ou um tiro na cabeça. Outros são cozidos vivos ou até mesmo comidos vivos[31].

Devido ao especismo antropocêntrico, isso é feito a bilhões de animais não humanos todos os dias e é considerado algo plenamente aceitável. Se não soubéssemos a que espécie pertencem as vítimas, certamente consideraríamos tal situação como sendo uma forte candidata a receber nossa prioridade. Somente o especismo antropocêntrico pode fazer alguém pensar que as pessoas que se dedicam a lutar contra esse tipo de horror devem ser repreendidas por não estarem, ao mesmo tempo, abordando outros problemas que possuem uma escala de dano muito menor e são muito menos negligenciados.

 

  1. Grau de negligência

 

A quantidade de pessoas se dedicando a cada causa e os recursos arrecadados não são proporcionais à escala de dano do problema que cada causa lida. Por exemplo, de todas as doações feitas nos Estados Unidos, 97% do montante arrecadado vai para causas humanas[32]. Os outros 3% restantes vão para causas ambientalistas e de defesa animal (e não se sabe o quanto desses 3% vai para a causa animal). Mesmo entre as pessoas que costumam doar para a causa animal, em média mais de dois terços de suas doações vão para causas humanas[33]. Como observado por Horta (2017, p. 187), existem pessoas que, apesar de serem veganas, acreditam que os humanos devem vir em primeiro lugar. Envolvem-se em causas humanas, mas não fazem nada (ou fazem muito menos) para defender os animais não humanos. Esse é um exemplo de uma atitude vinda de veganos, mas especista[34]. Em resumo, a luta pelos animais é muitíssimo mais negligenciada do que a luta pelos humanos, apesar de a causa animal lidar com um problema que possui uma escala de dano astronomicamente maior. Isso acontece justamente devido à predominância do especismo antropocêntrico. É por essa mesma razão que os humanos já recebem proteções que os animais não humanos não possuem de maneira alguma, há muito mais pessoas lutando por causas humanas e os recursos disponíveis para causas humanas são vastamente maiores[35]. Não é apenas que os animais não humanos recebem menos ajuda do que recebem os humanos: na vasta maioria dos casos não recebem ajuda alguma e, além disso, são literalmente massacrados como se fossem coisas. Isto é, dada a vigência do especismo antropocêntrico, nascer como membro da espécie humana é ser privilegiado, pois implica receber uma série de proteções; nascer como animal não humano é receber uma sentença de desgraça, pois normalmente implica viver uma vida de sofrimento intenso e ter uma morte bastante prematura.

 

  1. Tratabilidade

 

Poder-se-ia pensar que não há nada que se possa fazer para mudar a situação dos animais não humanos. Mas, isso não é verdade. Em relação aos animais explorados é possível escolher não consumi-los e reivindicar mudanças de atitude no público e na legislação com a meta de abolir esse uso[36]. Já em relação aos animais que estão na natureza, já existem programas de ajuda a animais selvagens, e muito mais poderia ser pesquisado nesse sentido. Exemplos são a vacinação de animais selvagens, ajuda a animais em desastres naturais, estudos sobre o impacto de cada tipo de vegetação nas taxas de nascimentos em espécies de animais que tendem a ter vidas predominantemente negativas ou positivas, ou simplesmente evitar intervenções que contribuem para que os processos naturais prejudiquem os animais[37].

 

  1. Escolhendo causas a partir de uma perspectiva não tendenciosa

 

Se não soubéssemos a que espécie pertencem os afetados por nossa decisão, defenderíamos uma altíssima prioridade da causa animal – não porque ela lida com animais não humanos, mas porque lida com um problema que tem uma escala de dano muitíssimo maior, é altamente tratável e é muito mais amplamente negligenciada[38]. É por essa razão que priorizar essa causa não é uma atitude especista. Pelo contrário: não priorizá-la é que é. Se somos antiespecistas ficaremos indignados é em saber que, devido a uma preferência por humanos, a vasta maioria das pessoas está priorizando causas que lidam com problemas que possuem uma escala de dano muito menor e são muito menos negligenciados.

Um experimento de pensamento ajudará a reforçar essa conclusão. Imagine que os papéis fossem invertidos, isto é, que os animais não humanos estivessem na situação em que se encontram os humanos, e que os humanos estivessem na terrível condição em que se encontram os animais não humanos. Imagine também que, nessa realidade alternativa, os animais já contariam com várias proteções que os humanos não possuiriam, e a causa animal já contaria com um número muito maior de adeptos e receberia uma quantidade muito maior de recursos. Imagine que nesse mundo fictício aquelas poucas pessoas que escolheram ajudar os humanos são acusadas de especismo. Essa acusação seria absurda, pois tais pessoas escolheram ajudá-los não por que são humanos, mas porque nesse mundo fictício os humanos estão em uma situação pior, são uma quantidade de vítimas muito maior, e são muito mais negligenciados. Quem seria especista, nesse mundo fictício, é quem escolhe não priorizar os humanos. Mas, se é assim, então em nosso mundo real priorizar causas humanas é ser especista, assim como é especista acusar de especismo quem prioriza a causa animal, pois condenaríamos tais atitudes se não soubéssemos a espécie dos afetados por essa decisão.

 

  1. Por que mesmo especistas antropocêntricos teriam que priorizar a causa animal

 

Suponhamos que um sofrimento de mesma magnitude importasse 10 vezes mais em humanos do que em animais não humanos. Isso significaria que, para investirmos em ajudar animais não humanos a mesma quantia de recursos que investiríamos em ajudar humanos, teria de haver 10 animais não humanos sofrendo o equivalente (ou então, um único animal não humano sofrendo 10 vezes mais).

Suponhamos agora que a quantidade anual de animais não humanos que passassem por uma situação do sofrimento extremo fosse muito menor do que realmente é: suponhamos que fosse “apenas” um trilhão indivíduos. Imaginemos que a quantidade anual de humanos padecendo de um sofrimento equivalente àquele do qual padecem os animais não humanos fosse muito maior do que realmente é: suponhamos fosse o total da população humana (isto é 7,9 bilhões de indivíduos[39]). Se o sofrimento humano importasse 10 vezes mais do que o sofrimento equivalente de animais não humanos, então, o sofrimento dos 7,9 bilhões de humanos seria multiplicado por 10 (isto é, equivaleria ao sofrimento de 79 bilhões de animais não humanos). O sofrimento de cada animal não humano, por sua vez, seria multiplicado por 1 (isto é, 1 trilhão). Mesmo fazendo todas essas concessões, ainda teríamos de investir 12,65 vezes mais recursos em ajudar os animais não humanos.

Se levarmos em conta os números reais, a proporção é astronomicamente maior. A população mundial de humanos gira em torno de 7,9 bilhões. Já a população mundial de animais não humanos sencientes gira em torno de 1 a 10 quintilhões[40]. Isto é, para cada humano existe algo entre 126 milhões a 1,26 bilhões de animais não humanos sencientes. Vimos que a imensa maioria dos animais não humanos (seja os que nascem na exploração, seja os que nascem na natureza) vivem vidas repletas de sofrimento. Além disso, por mais que seja muito ruim a situação de muitos humanos, a situação da imensa maioria dos animais não humanos é geralmente muito pior do que a situação da maioria dos humanos.

Assim, levando em conta a situação real, para se negar a prioridade de melhorar a situação dos animais não humanos teria que ser postulado que o sofrimento de humanos importa pelo menos 126 milhões de vezes mais do que o sofrimento equivalente de animais não humanos. Mas isso é completamente absurdo. Aliás, de um ponto de vista não tendencioso, não há sequer justificativa para se dar um peso levemente maior ao bem dos humanos: sofrimentos equivalentes precisam receber o mesmo peso.

Poderia ser objetado que não importa o número de vítimas, nem a gravidade da situação de cada vítima, e nem o grau de negligência: cada um está justificado a lutar pela causa que bem entender, ou mesmo não lutar por causa nenhuma. Essa é certamente uma posição altamente questionável. Mas, mesmo que fosse uma posição plausível, observe o que ela implica: que seus adeptos não tem nenhum motivo para criticar quem luta pelos animais por não se dedicarem também para causas humanas.

Em resumo, seja lá que posição adotemos, a crítica aos defensores dos animais não se sustenta. Se rejeitamos o especismo e damos igual peso ao bem de cada ser senciente, segue-se a prioridade da causa animal, pois é o que concluiríamos se não soubéssemos a espécie dos afetados. Se, por outro lado, damos um peso muito maior ao bem dos humanos, também segue-se a prioridade da causa animal, dada a escala de dano astronomicamente maior. Por fim, se afirmamos que cada um está justificado a escolher a causa que bem entender, então não há razão para criticar os defensores dos animais por não lutarem por causas humanas.

 

  1. Por que a acusação é ela própria especista antropocêntrica

 

É de se admirar que pessoas que se dizem antiespecistas estejam a focar em criticar quem se dedica integralmente a defender os animais, quando é justamente o especismo antropocêntrico a razão pela qual uma quantidade astronômica de seres sencientes têm vidas repletas de sofrimento extremo e morrem prematuramente.

É interessante observar que normalmente apenas os defensores dos animais são cobrados a defenderem causas humanas. Aqueles que se dedicam somente a causas humanas normalmente não são acusados de especismo por não lutarem pelos animais não humanos (acusação que, nesse caso, faria sentido, já que estão negligenciando aquele problema que dariam prioridade se não soubessem a espécie das vítimas). Aliás, quem se dedica a determinada causa humana não é cobrado a lutar por outras causas humanas – isso é cobrado especificamente dos defensores dos animais. Cobram das pouquíssimas pessoas que se dedicam ao problema com maior escala de dano e mais negligenciado, que passem a se dedicar para outros problemas com escalas de dano muito menores e muito menos negligenciados, só porque as vítimas desses outros problemas são humanas. Essa atitude, sim, certamente é especista. Aliás, mesmo quem não se dedica a causa alguma dificilmente recebe o mesmo tipo de crítica que recebem os defensores dos animais. Novamente, esse é um exemplo gritante de especismo, pois revela que no entender de quem faz a crítica, ajudar os animais é pior do que não ajudar ninguém.

Além disso, se o foco da crítica são os defensores dos animais por não estarem lutando por causas humanas, isso dá a entender não apenas que os ativistas de causas humanas (e mesmo quem não luta por causa alguma) não fazem nada de errado ao não defenderem os animais: dá a entender também que não fazem nada de errado ao prejudicarem os animais (consumindo-os, por exemplo). Apenas o especismo pode explicar essa disparidade de cobranças. Isso tudo sugere fortemente que a acusação de especismo que fazem sobre os defensores dos animais é simplesmente uma forma de expressar o seu próprio especismo.

 

  1. Conclusão

 

Dado o que vimos, a acusação de que os ativistas da causa animal estariam a ser especistas “anti-humanos” por não se dedicarem simultaneamente à causas humanas é apenas uma variação da visão antropocêntrica que afirma que ninguém deve lutar pelos animais enquanto houver humanos precisando de ajuda. Trata-se de uma variação, pois reconhece que é correto lutar pelos animais, mas apenas se simultaneamente luta-se pelos humanos (mesmo que os humanos já sejam considerados em maior grau, estejam em muito menor número de vítimas, estejam em uma situação muito melhor, já recebam ajuda de uma quantidade imensamente maior de pessoas, mesmo que as causas humanas já recebam muito mais recursos etc.). Obviamente, é essa visão que é especista, pois privilegia tendenciosamente os humanos.

Enquanto a afirmação de que não deve-se lutar pelos animais enquanto houver humanos necessitados surge normalmente de pessoas que se auto declaram antropocêntricas, a acusação de que os defensores dos animais seriam especistas “anti-humanos” surge por parte de pessoas que afirmam rejeitar o especismo (apesar de, como vimos, defenderem igualmente o especismo antropocêntrico). Isso parece mostrar que a estratégia para defender atitudes antropocêntricas mudou. Antes, os defensores do antropocentrismo assim se declaravam, e argumentavam a favor do mesmo. À medida que o antropocentrismo foi cada vez mais sendo reconhecido como injustificável (isto é, que é forma de especismo), seus defensores passaram a dizer que rejeitam o especismo para acusar aqueles que realmente rejeitam o especismo de serem especistas anti-humanos. Independentemente de isso ser feito devido a não terem entendido o que significa ser especista, ou com o propósito deliberado de confundir o público, o resultado é o mesmo.

Essa nova estratégia é mais difícil de ser percebida, pois o interlocutor se apresenta como antiespecista. Além disso, apesar de envolver uma distorção gigantesca dos conceitos de especismo e antiespecismo, como são conceitos ainda pouco conhecidos, há um risco de o público em geral pensar que rejeitar o especismo significa ser especista antropocêntrico. As pessoas que realmente rejeitam o especismo deveriam começar a prestar atenção nessa estratégia pois, para combatê-la, primeiro é necessário perceber que ela existe.

 

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[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral das atividades da Ética Animal no Brasil (www.animal-ethics.org/pt). Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org

[2] Ver por exemplo a posição de Carruthers (1992).

[3] Ver por exemplo a posição de Souza (2016a, 2016b, 2017a, 2017b, 2020a, 2020b).

[4] Para uma lista, ver O’donnell (1993).

[5] Sobre a definição de especismo e a história desse conceito, ver Horta (2010a).

[6] Sobre essas implicações, ver Cunha (2021a, p. 57-69).

[7] Existem também formas de especismo não antropocêntricas, que constroem degraus de estatura moral entre os animais não humanos. Sobre isso, ver Dunayer (2004, p. 2-4), Horta (2010a, p. 258) e Cunha (2021a, p. 28-30).

[8] Para uma descrição das várias formas pelas quais sofrem os animais explorados, ver Horta (2017, p. 65-98).

[9] Para estatísticas, ver Our World in Data (2018), Fishcount (2019), Sanders (2018), Schukraft (2019) e Rowe (2020, 2021a, 2021b).

[10]Sobre a situação dos animais selvagens, ver Animal Ethics (2020) e Cunha (2022).

[11] Uma busca no Instagram (www.instagram.com) em 19 de setembro 2022 apresentou os seguintes resultados para os termos a seguir (em termos do número de publicações): 133.040 para “#antiespecismo”, 35.422 para “#antiespecista”, 64.170 para “#antispeciesism” 7.009 para “#antispeciesist”.

[12] Por exemplo, Souza (2020a), em uma crítica ao que chama de “veganismo tradicional” afirma que o mesmo “defende que os veganos lutem unicamente pelos animais não humanos, ao ponto de hierarquizar as lutas colocando a antiespecista como superior às contra outras opressões”. No lugar disso, o autor propõe “que as pessoas lutem, na medida do possível para cada uma delas, tanto contra o especismo quanto contra outras formas de opressão”. O autor defende a mesma posição também em Souza (2016a, 2017b).

[13] Sobre essa estrutura, ver EA Concepts (2016) e Cunha (2021, p. 193-228).

[14] Para estatísticas sobre a exploração de invertebrados terrestres, ver Schukraft (2019) e Rowe (2020, 2021a, 2021b). Sobre a exploração de vertebrados e invertebrados aquáticos, ver ver Fishcount (2019). Sobre vertebrados terrestres, ver Our World in Data (2018) e   Sanders (2018),

[15] Estatísticas disponíveis em: https://www.worldometers.info/. Acesso em: 26 out. 2022.

[16] Estatísticas disponíveis em Our World in Data (2018) e em Fishcount (2019).

[17] Sobre isso, ver Animal Ethics (2020, p. 9-59) e Cunha (2022, p. 19-34).

[18] Sobre esse ponto, ver Horta (2010b) e Cunha (2022, p. 28-34).

[19] Ver National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (2008) e Tomasik (2019).

[20] Exceto se indicado, a descrição da situação dos animais explorados foi retirada de Horta (2017, p. 65-97)

[21] Appleby e Hughes (1991); European Food Safety Authority (2005).

[22] Weeks e Butterworth (2004); Bessei (2006).

[23] Antena3 (2011); Gayle, D. (2013).

[24] Marchant-Forde (2008).

[25] Van Putten (1982) Le Neindre, P. (1993).

[26] L214 (2009, 2010).

[27] Mitchell (1992); Broom (2003); Averos et. al. (2007).

[28] Warrick (2001); Pitney (2016).

[29] Cooke e Sneddon (2007).

[30] Robb e Kestin (2002).

[31] Robb e Kestin, Ibid.

[32] Kateman (2021).

[33] Anderson (2018, p. 9).

[34] Há veganos que são contrários até mesmo a fazer comparações (em termos de importância moral) da consideração devida a animais humanos e não humanos (por exemplo, são contrários a afirmar que o especismo é tão reprovável quanto o racismo). Por exemplo, Santos, Souza e Nierdele (2021, p. 295) descrevem a posição defendida por um grupo de ativismo vegano: “essa equiparação legitimaria, mesmo que sutilmente, a inferiorização das pessoas negras”. Para outros exemplos de um posicionamento contrário a comparar as discriminações sofridas por animais não humanos e humanos com base na alegação de que isso seria inferiorizar os humanos, ver Souza (2016b, 2017a, 2020b). Para uma defesa da posição contrária, isto é, de que o especismo não é menos injusto do que discriminações contra humanos, ver Cunha (2021b).

[35] Além disso, boa parte dos recursos destinados à causas humanas são utilizados na compra de produtos de origem animal, o que contribui para o aumento da quantidade de animais que sofrem e morrem.

[36] Aqui é possível ver uma análise sobre estratégias possíveis para a causa animal: https://www.sentienceinstitute.org/foundational-questions-summaries

[37] Sobre formas de ajudá-los e o que mais poderia ser pesquisado nesse sentido, ver Animal Ethics (2020, p. 60-85, 136-182; ); Faria e Horta (2020) e Cunha (2022, cap. 8.2 e 9.4).

[38] Exatamente com base nesses três critérios, a Giving What We Can, organização especializada em recomendar doações eficientes, recomenda a causa animal como uma das prioridades mais altas. Ver https://www.givingwhatwecan.org/cause-areas

[39] https://www.worldometers.info/. Acesso em: 26 out. 2022.

[40] Ver Tomasik (2019).

O conflito entre defesa dos animais e ambientalismo no que diz respeito a intervenções que afetam os animais selvagens

O conflito entre defesa dos animais e ambientalismo no que diz respeito a intervenções que afetam os animais selvagens

 

Autor:

Luciano Carlos Cunha[1]

 

  1. A situação dos animais na natureza, em decorrência dos processos naturais

 

Muitas práticas humanas prejudicam direta ou indiretamente os animais que estão na natureza. Entretanto, nos últimos anos vários autores têm apontado que, se os animais merecem consideração, parar de prejudicá-los não é o bastante[2]. Isso porque, ao contrário do que comumente se pensa, os animais já são altamente prejudicados pelos processos naturais, com total independência das ações humanas. Fome, sede, doenças, desastres naturais e eventos meteorológicos hostis, por exemplo, são a norma na natureza[3]. Além disso, a maioria das espécies de animais possui ninhadas gigantescas (com milhares ou mesmo milhões de filhotes, dependendo da espécie) – algo comum em anfíbios, répteis, peixes e invertebrados em geral. Em períodos de aproximada constância populacional é possível medir a taxa de mortalidade prematura a partir do tamanho da ninhada: se a população permaneceu aproximadamente constante durante algumas gerações, isso é um indicador de que em média sobreviveu apenas um descendente por adulto (isto é, dois por ninhada, e menos do que isso se há adultos que se reproduzem mais de uma vez na vida)[4]. Isto é, em decorrência dos processos naturais, para cada animal que consegue sobreviver, milhares ou mesmo milhões nascem apenas para experimentar quase que somente (ou mesmo somente) sofrimento extremo e morrer muito prematuramente. A quantidade de animais que padece desse destino é tão gigantesca que faz até mesmo os números da exploração animal, que já são enormes, quase desaparecerem em comparação[5]. Isso é assim não por conta de efeitos diretos ou indiretos de práticas humanas: já era assim muito antes do aparecimento da espécie humana.

 

  1. Intervenções na natureza para ajudar os animais e intervenções para matá-los

 

Por conta das razões apontadas acima, nos últimos anos tem surgido uma proposta de pesquisar maneiras de minimizar o sofrimento e as mortes prematuras dos animais que estão na natureza[6]. Curiosamente, essa proposta por vezes recebe rejeição mesmo por parte de quem se preocupa com os animais. Mais curiosamente ainda, programas ambientalistas de intervenção na natureza que envolvem a matança de animais selvagens[7] (como o extermínio de animais que são membros de espécies classificadas como invasoras, por exemplo) recebem ampla aceitação, inclusive de várias pessoas que se preocupam com os animais.

Um dos motivos pelos quais isso acontece é simplesmente o fato de as pessoas terem uma ideia equivocada em relação a ambos os tipos de proposta. Na visão comum, a proposta de ajudar os animais selvagens, ou não percebe que ajudá-los pode ter consequências negativas em longo prazo, ou sabe disso mas defende ajudar mesmo que o resultado seja pior do que aquele decorrente de não ajudar. Isto é, na visão comum, a proposta de ajudar os animais selvagens, ou é ingênua, ou é inconsequente. De acordo com essa mesma visão, as intervenções ambientalistas matam uma boa quantidade de animais, mas apenas porque essa é a única maneira de garantir que, daqui para frente, não haja uma quantidade ainda maior de sofrimento e de mortes prematuras de animais. Segundo essa visão comum, isso fica evidente pelo fato de as intervenções ambientalistas almejarem preservar a biodiversidade e o equilíbrio ecológico, além de serem bem informadas pela ciência da ecologia (o que faz com que saibam quais serão as consequências em longo  prazo, diferentemente do que acontece no caso dos proponentes de diminuir o sofrimento dos  animais selvagens).

Nos itens a seguir, defenderei que essa visão comum entende de modo completamente equivocado ambas as propostas, e que essa percepção equivocada quanto a esses casos específicos de intervenção na natureza são exemplos específicos da confusão mais geral em relação a quais são as metas do ambientalismo e da defesa dos animais.

 

  1. Por que a visão comum está equivocada quanto à meta ambientalista

 

Uma parte do público aprova as intervenções ambientalistas porque acredita que elas almejam conseguir o melhor estado de coisas para os animais. Isso fica evidente em afirmações do tipo: “os defensores dos animais devem apoiar as medidas ambientalistas, pois os animais precisam do meio ambiente enquanto recurso”. A seguir, veremos onde está o equívoco com essa visão.

De acordo com a visão comum, ambas as propostas – defesa animal e ambientalsimo –  possuem a mesma meta (conseguir o melhor mundo para os seres sencientes) mas discordam em relação aos meios para alcançar essa meta. Mas, isso é falso. A divergência fundamental entre essas duas propostas é quanto aos fins, não quanto aos meios. O que o ambientalismo almeja com a matança de animais não é um mundo melhor para os animais. Pelo contrário: o que o ambientalismo valoriza em si são certas entidades não sencientes, como espécies (e não seus membros) e ecossistemas (e não seus habitantes), ou propriedades dessas entidades, como o grau de biodiversidade e de equilíbrio ecológico[8]. O ambientalismo defende que essas entidades possuem valor em si (e não enquanto recurso para os seres sencientes). O ambientalismo não quer preservar o meio ambiente enquanto recurso para os animais. Pelo contrário, nessa visão normalmente os animais é que são vistos como meros exemplares de espécies e como peças para a manutenção dos ecossistemas. É por essa razão que os ambientalistas defendem que não há nada de errado com a exploração animal, apesar de todo o sofrimento e mortes que ela causa, desde que seja feita de maneira sustentável[9]. É por essa mesma razão que os programas ambientalistas de controle populacional normalmente envolvem matar os animais, descartando completamente a opção de esterilizá-los[10].

Uma das razões pelas quais há no senso comum essa confusão em relação à meta que o ambientalismo visa alcançar é que a retórica ambientalista tende a colocar as coisas em termos de “preservar x destruir” o meio ambiente. Como o ambientalismo lida com questões que afetam os animais selvagens, o público tende então a pensar que aquilo que almeja é preservar o meio ambiente enquanto recurso para os animais. Essa retórica causa confusão, pois o meio ambiente pode ser preservado nas mais distintas configurações. Se nosso objetivo é o bem dos animais, então defenderemos que o meio ambiente deve ser mantido na configuração que for melhor para os animais. Por exemplo, se modificar a configuração natural de certo ecossistema for diminuir o sofrimento e o número de mortes dos animais, é isso o que defenderemos fazer se nosso objetivo é o bem dos animais. Já as configurações valorizadas pelo ambientalismo variam de acordo com cada corrente ambientalista, mas nenhuma dessas configurações é baseada na preocupação com o bem dos animais. As configurações de ecossistemas são valorizadas pelo ambientalismo de acordo com seu grau de diversidade[11], complexidade[12], raridade[13], do tempo que levou para se formar[14], do grau de ausência de intervenção humana[15], do grau com que exibe certas propriedades estéticas[16], do grau com que representa certos ideais[17] etc. Ambientalistas defenderão manter os ecossistemas em configurações que exibem em maior grau essas propriedades, mesmo que isso aumente a quantidade de sofrimento e de mortes de animais ao longo do tempo. Isso tudo fica oculto quando a questão é colocada em termos de “preservar x destruir”, pois esconde que há várias configurações nas quais um ambiente é possível de ser preservado, e que as configurações valorizadas pelo ambientalismo não tem a ver com o bem dos animais.

Por exemplo, ao avaliar qual tipo de vegetação é melhor que esteja presente em determinado ecossistema, uma ética baseada na senciência seria guiada por um critério como “qual delas resulta em menor quantidade de sofrimento e mortes prematuras para os animais afetados?”. Já uma posição ambientalista seria guiada por critérios como “qual delas apresenta a vegetação nativa?” ou “qual aumenta a biodiversidade?”. Está claro então que tratam-se de metas muito distintas uma da outra.

 

  1. Por que a visão comum está equivocada quanto à proposta de ajudar os animais

 

A visão comum sobre a proposta de ajudar os animais selvagens também é equivocada. Em primeiro lugar, não há nenhum de seus defensores que afirme que devemos ajudá-los mesmo se as consequências de prestar ajuda forem piores do que as de não ajudar. Pelo contrário, o que defendem é pesquisar como aumentar o número de casos em que ajudar tem maior probabilidade de ter saldo positivo. Em segundo lugar, seus proponentes estão cientes da complexidade das interações nos ecossistemas e de que estimar os efeitos em longo prazo não é algo fácil. Entretanto, o que defendem é a criação de um campo de pesquisa, chamado biologia do bem-estar[18], cujo objetivo seria estudar como os animais são afetados em seus ecossistemas do ponto de vista do que é positivo ou negativo para o seu próprio bem-estar – isto é, enquanto indivíduos passíveis de serem prejudicados ou beneficiados, e não enquanto componentes de ecossistemas ou exemplares de espécies (como é feito na biologia da conservação). A biologia do bem-estar incorporaria conhecimentos de áreas como ecologia, zoologia, ciência do bem-estar animal e ciência veterinária. O conhecimento proveniente da biologia do bem-estar poderia informar os programas de ajuda, tornando-os cada vez mais seguros e eficientes. Em resumo, o que os proponentes de diminuir o sofrimento dos animais selvagens estão a defender é que estudar a situação de maneira aprofundada tem maior probabilidade de resultar em melhores consequências em longo prazo do que deixar essa questão de lado e “deixar a natureza seguir o seu curso”.

Aquela meta que o senso comum atribui equivocadamente ao ambientalismo (diminuir o sofrimento e as mortes dos animais ao longo do tempo) é justamente a meta da proposta de ajudar os animais selvagens. Nessa proposta, diferentemente do que acontece no caso do ambientalismo, o bem dos animais é a meta: os animais são valorizados em si enquanto indivíduos capazes de sofrer e desfrutar, e não enquanto meras peças para a manutenção de ecossistemas ou meros exemplares de espécies, como ocorre no ambientalismo.

Essa proposta também pode ser bem informada cientificamente: o conhecimento científico não precisa estar restrito a informar medias antropocêntricas ou ambientalistas. Por exemplo, a ecologia lida com categorias como espécies e ecossistemas, mas isso não implica que, para se obter conhecimento em ecologia ou para se utilizar o conhecimento já existente, seja necessário incorporar uma perspectiva que valoriza em si entidades como espécies ou ecossistemas, e não os indivíduos sencientes. Isso é assim porque uma coisa é o conhecimento científico, descritivo, e outra coisa são as metas normativas que guiam o uso desse conhecimento e a busca por novos conhecimentos[19]. Isso mostra que não são apenas as intervenções ambientalistas que podem ser bem informadas cientificamente. Pensar que sim é confundir a ecologia (a ciência que descreve como se dão as interações nos ecossistemas) com o ambientalismo (apenas uma das várias perspectivas normativas que poderia se basear nos conhecimentos da ecologia para tentar alcançar suas metas). O conhecimento proveniente da ecologia é atualmente mais utilizado para alcançar metas ambientalistas mas, em décadas passadas era predominantemente utilizado para alcançar metas antropocêntricas. Entretanto, o conhecimento proveniente dessa área (e de outras) poderia ser utilizado igualmente para tentar alcançar a meta de diminuir o sofrimento e as mortes dos animais.

 

  1. Uma maneira de entender bem a diferença: imaginar histórias completas de mundo

 

Dado o que vimos, é um erro pensar que as intervenções ambientalistas escolhem prejudicar os animais agora para alcançar o melhor para os animais em longo prazo. Da mesma maneira, é um erro pensar que as intervenções para ajudar os animais beneficiam alguns animais agora e negligenciam o impacto disso em longo prazo. Reparar em quais critérios seriam utilizados por ambos os tipos de perspectiva para avaliar o quão boa ou ruim seria a história completa do mundo ajudará a perceber as diferenças de metas entre essas perspectivas[20] – evitando-se assim qualquer confusão que possa surgir entre o que uma perspectiva almeja em curto e em longo prazo. Defensores dos animais avaliarão a história completa do mundo com base em como os seres sencientes serão afetados positiva ou negativamente[21]. Perspectivas ambientalistas, pelo contrário, avaliação essa história completa do mundo a partir do quão preservadas estão certas entidades não sencientes – estas sim, valorizadas em si pelo ambientalismo. Por exemplo, avaliarão se os ecossistemas se encontrarão em certas configurações valorizadas pelo ambientalismo. Como vimos, essas configurações não dizem respeito ao bem dos seres sencientes, mas por exemplo, ao grau com que o ecossistema exibe certas propriedades estéticas, seu grau de complexidade, diversidade ou de raridade, se exibe ou não somente membros de espécies nativas, no quão pouco foi transformado por humanos, etc. Isso significa que os ambientalistas poderiam dizer que uma história completa de mundo é melhor (caso apresente em maior grau os ecossistemas naquelas configurações), mesmo que seja muito pior para os seres sencientes (por exemplo, mesmo que contenha muito mais sofrimento e mortes prematuras, menos vidas positivas etc.).

 

  1. Equilíbrio ecológico e biodiversidade coincidem com o que é melhor para os animais?

 

Poderia ser objetado que, apesar de ambas as perspectivas possuírem metas muito distintas, buscar a biodiversidade e o equilíbrio ecológico coincide com o que é melhor para os animais. Entretanto, ao contrário do que por vezes se imagina, essas noções (biodiversidade e equilíbrio ecológico) não são baseadas no bem dos seres sencientes, e não dependem deste. É possível que uma situação tenha um alto grau de biodiversidade e/ou de equilíbrio ecológico, mas também nela sejam maximizados o sofrimento e as mortes prematuras dos seres sencientes. É possível até mesmo que, dadas duas situações, a que apresentar maior grau de biodiversidade e/ou de equilíbrio ecológico seja muito pior para os seres sencientes.

Da maneira como é normalmente utilizada, a noção de equilíbrio ecológico diz respeito a uma certa estabilidade em relação a um estado tomado como referência (geralmente, em relação à variação no tamanho das populações mas, como vimos no item 3, os critérios mudam em cada variante do ambientalismo[22]). Já a noção de biodiversidade diz respeito à variedade de espécies. Há situações que são equilibradas e nas quais há alto grau de biodiversidade que podem ser terrivelmente ruins para os seres sencientes. Um exemplo é a própria situação citada no item 1, na qual há estabilidade populacional e biodiversidade mas as taxas de mortalidade prematuras e de vidas onde predominam largamente o sofrimento são na casa dos milhares ou mesmo milhões para cada animal que sobrevive até à idade adulta.

Poderia ser objetado que, se houvesse maior desequilíbrio ou menos biodiversidade, então o sofrimento e as mortes prematuras seriam ainda maiores. Entretanto, não é assim. Tudo dependerá de se o maior ou menor grau de equilíbrio ou de biodiversidade resultam em uma maior quantidade de nascimentos em espécies de animais cuja maioria geralmente nasce apenas para sofrer e morrer bastante prematuramente ou em espécies de animais que seus membros tem mais chances de terem vidas positivas. Não há nenhuma correlação direta entre maiores níveis de equilíbrio ecológico ou de biodiversidade com a prevalência de vidas positivas sobre as negativas, e de vidas longas sobre as curtas.

Em resumo: equilíbrio ecológico e biodiversidade apenas coincidentemente poderiam resultar em algo melhor para os animais, e muitas vezes resultam em situações altamente negativas para eles. Portanto, se o objetivo é conseguir o melhor estado de coisas para os animais, e se é possível investigar diretamente como os animais são afetados positiva ou negativamente, se basear no grau de biodiversidade ou de equilíbrio não é uma boa ideia.

  1. Por que existe essa confusão?

 

Se ambientalismo e consideração pelos animais possuem objetivos tão opostos, por que são tão frequentemente confundidos? Por vários motivos. Vimos no item 3 que um motivo possível é a retórica que tende a colocar a questão em termos de “preservar x destruir o meio ambiente”, ocultando que é possível preservá-lo em várias configurações distintas, e que a configuração almejada pelo ambientalismo não é a melhor (ou sequer minimamente boa) para os animais. Outro motivo é simplesmente o desconhecimento do que os ambientalistas realmente defendem. Por exemplo, muitos dos representantes centrais da ética ambiental (de correntes diversas como ecocentrismo[23], biocentrismo[24], ecologia profunda[25], ecologia social[26] e ecofeminismo[27]) se posicionam explicitamente contra a consideração moral plena dos animais não humanos[28]. Outros possíveis motivos, como vimos, são as crenças equivocada de que biodiversidade e equilíbrio ecológico coincidem com a melhor situação para os animais e de que, para se obter e utilizar conhecimento na área de ecologia, é necessário adotar uma postura normativa ambientalista.

Outra possível raiz a da confusão é o fato de que o discurso ambientalista costuma enfatizar o benefício que suas intervenções por vezes causam aos animais, e isso pode dar a entender que valorizam em si o bem dos animais. Entretanto, por vezes os os animais são ajudados por ambientalistas somente porque em certos casos ajudá-los é um meio para alcançar outras metas – como a preservação de certas espécies ou manter o ecossistema em certa configuração preferida pelos ambientalistas – estas sim, valorizadas em si pelo ambientalismo. A prova de que a meta do ambientalismo não é o bem dos animais é que, quando os animais são de espécies abundantes (ou são de espécies não valorizadas pelo ambientalismo) os ambientalistas defendem, em vez disso, programas de matança e/ou o uso desses animais enquanto recursos.

Além disso, o discurso ambientalista tende a destacar que os animais que são o alvo da matança (normalmente nomeados pelos ambientalistas como pragas) causam danos aos outros animais de espécies que os ambientalistas visam preservar[29]. Novamente, isso pode dar a entender equivocadamente que a meta ambientalista é diminuir a taxa de sofrimento e mortes totais para os animais, mas é importante observar que os danos causados pelos animais que são membros das espécies  que os ambientalistas valorizam e os danos que sofrem os animais que são membros das espécies que são alvo da matança não são mencionados. Se a preocupação fosse com os seres sencientes em geral, danos de igual magnitude receberiam igual peso, independentemente de se são sofridos ou causados por membros de uma espécie rara ou abundante, nativa ou invasora etc. Definitivamente, não é o que acontece nas intervenções ambientalistas.

 

  1. Há intervenções que defensores dos animais e ambientalistas poderiam concordar?

 

            Vimos que a defesa dos animais e o ambientalismo partem de ideais opostos que, na prática, frequentemente resultam em prescrições conflitantes. Entretanto, em relação a ajudar os animais selvagens, há vários tipos de propostas que tanto defensores dos animais quanto ambientalistas poderiam apoiar, ainda que por razões distintas.

Em primeiro lugar, é interessante observar que as três grandes correntes ambientalistas não tem nenhuma razão para se opor à vasta maioria dos programas para ajudar os animais selvagens[30]. Comecemos pelo ecocentrismo[31], que valoriza determinados ecossistemas (por serem muito complexos, muito raros, terem se formado há muito tempo etc.). A maioria das intervenções para ajudar os animais não extinguiria esses ecossistemas nem alteraria as propriedades dos ecossistemas que os ecocentristas valorizam – apenas faria com que houvesse menos sofrimento e mortes prematuras para seus habitantes. Já o naturocentrismo[32] teria de aceitar um número ainda maior de intervenções para ajudar os animais do que o ecocentrismo teria que aceitar, pois o naturocentrismo valoriza apenas aqueles ecossistemas que ainda não foram, ou foram pouco, alterados por atividades humanas. Dadas as mudanças climáticas decorrentes de práticas humanas, com exceção de talvez alguns ecossistemas nas profundezas do oceano, todos os ecossistemas foram já bastante alterados por práticas humanas. Portanto, o naturocentrismo teria que aceitar ajudar os animais em todos esses ecossistemas. Por fim, o biocentrismo[33] valoriza o que chama de “bem próprio” de cada organismo vivo, senciente ou não. O biocentrismo tem de então aceitar ainda mais intervenções do que os defensores dos animais têm que aceitar, pois precisa buscar garantir o bem dos seres sencientes e, adicionalmente, proteger também os organismos não sencientes[34].

Em segundo lugar, existem programas de ajuda a animais selvagens que poderiam ajudar a realizar tanto a meta de diminuição do sofrimento e mortes dos animais quanto as metas ambientalistas. Um exemplo é a vacinação de abelhas[35]. Ambientalistas têm razões para aprovar esses programas por preocupação com o risco de extinção de espécies de abelhas. Já defensores dos animais têm razões para aprovar esses programas porque a vacinação é positiva para as próprias abelhas, impedindo que fiquem doentes e morram. Outro exemplo nesse sentido é a proteção de grandes herbívoros, como elefantes. Os ambientalistas têm razões para protegê-los porque há várias espécies de elefantes em risco de extinção. Já os defensores dos animais têm duas fortes razões para apoiar esse tipo de programa. A primeira, é que diminui o sofrimento e as mortes dos próprios elefantes, que são então vacinados, medicados, recebem água, comida, abrigo etc.[36] A segunda – e mais importante – é que elefantes consomem uma grande quantidade de vegetação que, se estivesse disponível, contribuiria para haver uma maior quantidade de reproduções naquelas espécies de animais que maximizam a quantidade de filhotes e cuja vasta maioria nasce apenas para sofrer e morrer prematuramente[37]. Em resumo, proteger grandes herbívoros contribui para que seja diminuída drasticamente a quantidade de animais que nasceria apenas para sofrer e morrer.

Esses são apenas alguns exemplos de intervenções para diminuir o sofrimento e as mortes prematuras de animais selvagens que tanto defensores dos animais quanto ambientalistas poderiam apoiar, apesar das grandes diferenças entre essas perspectivas.

 

  1. Conclusão

 

A defesa dos animais e o ambientalismo possuem metas completamente distintas. É por essa razão que essas perspectivas conduzem programas muito distintos em relação aos animais que vivem na natureza. Assim, se nosso objetivo é beneficiar os animais, temos fortes razões para rejeitar os programas ambientalistas que envolvem prejudicá-los. Em vez disso, temos razões para apoiar programas que realmente visem ajudar os animais, como a biologia do bem-estar. Além disso, vimos também que, apesar de todas as suas divergências em termos de metas e fundamentos, há vários tipos de programas de ajuda a animais selvagens que tanto defensores dos animais quanto ambientalistas poderiam apoiar, ainda que por razões distintas.

Vimos também que duas crenças comuns são equivocadas: (1) a de que a meta ambientalista é uma história completa de mundo com menos sofrimento e mortes dos animais e; (2) a de que a proposta de ajudar os animais selvagens não é cientificamente bem informada. Essas crenças equivocadas conduzem várias pessoas a aceitarem os programas ambientalistas que envolvem matanças de animais e a rejeitarem a proposta de ajudar os animais na natureza. Entretanto, vimos que aquilo que as pessoas que mantêm essas crenças esperam equivocadamente dos programas ambientalistas está a ser proposto de maneira cientificamente bem informada justamente pela proposta de ajudar os animais selvagens. Em resumo, essas pessoas já aceitam a meta de ajudar os animais selvagens; só estão confusas em relação a qual proposta realizará essa meta.

 

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[1] Doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, coordenador geral das atividades da Ética Animal no Brasil (www.animal-ethics.org/pt). Contato: luciano.cunha@animal-ethics.org

[2] Ver por exemplo Bonnardel (1996); Cowen (2003); Cunha (2022); Faria (2016); Faria e Paez (2015); Fink (2005); Horta (2010a; 2011); Johannsen (2020); Mannino (2015); McMahan (2015); Pearce (2015); Sapontzis (1984); Tomasik (2015) e Torres Aldave (2015).

[3] Ver Animal Ethics (2020, p.16-60) e Cunha (2022, p. 19-34).

[4] Sobre isso, ver Horta (2010a, 2011), Animal Ethics (2020, p. 55-59) e Cunha (2022, p. 28-34).

[5] Sobre isso, ver Tomasik (2019).

[6] Ver autores citados na nota 2. Ver também Faria e Horta (2020).

[7] Para exemplos desses programas, ver Conabio (2009) e Council of Europe (2016). Para exemplos de autores que defendem esses programas, ver Callicott (1998); Eckersley (1992, p. 46-47); Hettinger (1994, p. 13-14); Rolston (1999, p. 260-61) e Warren (2000, p. 228). Para uma crítica às intervenções ambientalistas que envolvem matança de animais, ver Shelton (2004), Horta (2010b), Faria (2012), Cunha (2021, p. 131-143) e Etica Animal (2021).

[8] Exemplos de proponentes das várias correntes de ambientalismo serão referidos nos itens 7 e 8.

[9] Para exemplos, ver o posicionamento das seguintes organizações ambientalistas:  Convervation International ‌:https://www.conservation.org/brasil/iniciativas-atuais/pesca-sustentavel; EcoCanadá: https://eco.ca/blog/what-is-sustainable-fishing/; Fundo Amazônia: http://www.fundoamazonia.gov.br/pt/projeto/Pesca-Sustentavel/;

GreenPeace:https://www.greenpeace.org.uk/challenges/sustainable-fishing/;

Iberdrola:https://www.iberdrola.com/compromisso-social/pesca-sustentavel; National Geographic Society: https://www.nationalgeographic.org/encyclopedia/sustainable-fishing/ Marine Stewardship Council: https://www.msc.org/pt/o-nosso-trabalho/o-nosso-proposito/o-que-e-a-pesca-sustentavel; SeaFood Watch: https://www.seafoodwatch.org/; Sustainable Fisheries Partnership : https://sustainablefish.org/;WWF; https://www.wwf.org.br/natureza_brasileira/areas_prioritarias/amazonia1/nossas_solucoes_na_amazonia/pesca_sustentavel/. Acessados em 16 nov. 2021.

[10] Para um relato e uma crítica, ver Ética Animal (2021).

[11] Rolston (1992, p. 254).

[12]Attfield (1987a, cap. 5) e Rolston (1988, p. 72-3, 184-6).

[13] Eckersley (1992, p. 46, 47).

[14] Kirkwood e Sainsbury (1996, p. 239).

[15] Elliot (1982, p. 81-93).

[16] Leopold (1949, p. 224-225) e Hargrove (1989, p. 167, 178).

[17] Sagoff (1974, p. 228).

[18] Sobre biologia do bem-estar, ver Faria e Horta (2020) e Animal Ethics (2021, p. 136-182).

[19] Sobre essa distinção, ver Cunha (2022, p. 186-190).

[20] Para uma análise detalhada do conflito entre ética animal e ambiental, ver Dorado (2015).

[21] Para um exemplo dessa abordagem, ver Ética Animal (2019).

[22] Uma situação será considerada equilibrada ou não dependendo do quão parecido está o ecossistema com o estado em que se encontrava no momento tomado como ponto de referência. Entretanto, como qualquer instante no tempo (e, portanto, qualquer configuração em que o ecossistema se encontre) pode ser tomado como ponto de referência, essa noção acaba sendo arbitrária. Por exemplo, os proponentes do ambientalismo classificam o grau com que uma situação é equilibrada de acordo com o quão bem ela promove o que os ambientalistas valorizam em si. Por exemplo, se “equilíbrio ecológico” for definido como “aquela situação onde em cada local só há membros de espécies nativas”, então obviamente que a mera presença de membros de espécies não nativas causa um desequilíbrio ecológico. Entretanto, isso não indica se o sofrimento ou a quantidade de mortes aumentou o diminuiu. Para uma crítica às noções de equilíbrio ecológico e de estabilidade, e uma explicação do porquê esses conceitos não são mais utilizados em ecologia, ver Grimm e Wissel (1997) e Lévêque (2003, p. 204-228).

[23] Para exemplos, ver Callicott (1980, 1990, p. 103; 1992, p. 146-147; 1998; 2000, p. 211) e Leopold (2000, p. 135).

[24] Para exemplos, ver Schweitzer (1962 [1923] p. 354) e Varner (2002, p. 79).

[25] Para exemplos, ver Devall e Sessions (1985), Fox (1995) e Næss (1989, p. 167, 170; 1999, p. 148).

[26] Ver, por exemplo, a visão defendida por Bookchin (1994),

[27] Ver, por exemplo, a visão defendida por Warren (2000, p. 228).

[28] Pra exemplos adicionais, ver Hettinger (1994, p. 13-14), Linkola (2009), Rolston (1999, p. 260-61), Varner (1991, p. 177) e Wenz (1998, p. 308).

[29] Para um relato e uma crítica, ver Ética Animal (2021). Para exemplos dessa retórica por parte de ambientalistas, ver Davis (2018) e também a posição de Brent Beaven, coordenador de um programa de extermínio de animais exóticos, entrevistado em Roy (2020).

[30] Uma análise detalhada sobre esse ponto pode ser encontrada em Cunha (2015) e em Horta (2018).

[31] Exemplos de ecocentristas são Leopold (2000 [1949]) e Callicott (2000).

[32] Exemplos de naturocentristas são Elliot (1982) e Katz (1992).

[33] Exemplos de biocentristas são Attfield (1987b), Goodpaster (1978) e Taylor (1986). Há controvérsias sobre se o biocentrismo é realmente uma posição ambientalista, pois seus proponentes defendem que cada ser vivo é um indivíduo, e não uma parte do ambiente.

[34] Poder-se-ia pensar que o biocentrismo rejeitaria as intervenções que implicassem em menor quantidade de organismos vivos nascendo, mas isso é equivocado, pois a meta do biocentrismo não é maximizar a quantidade de seres vivos, mas garantir o bem próprio de cada organismo vivo.

[35] Sobre vacinação de abelhas, ver Raukko (2018).

[36] Sobre programas de proteção a elefantes, ver Pearce (2015)

[37] Sobre a relação entre a presença de elefantes e uma redução significativa da biomassa disponível, ver Cumming et al. (1997) e Guldemond e VanAarde (2008).