Especismo e as lutas por causas humanas

 

Por vezes os defensores dos animais são acusados de especismo por não estarem, simultaneamente, a lutar por causas humanas. De acordo com essa acusação, rejeitar o especismo implicaria atribuir o mesmo peso a cada causa, independentemente de ela lutar por animais humanos ou não humanos.

                     

Essa acusação parte de um entendimento equivocado do que é o especismo, que é uma discriminação contra indivíduos, não contra causas. Rejeitar o especismo implica dar o mesmo peso a níveis de prejuízos e benefícios similares em indivíduos de espécies distintas. Isso não implica que todas as causas sejam igualmente importantes, pois diferentes causas lidam com problemas que afetam quantidades de vítimas diferentes, que padecem de sofrimentos de diferentes magnitudes, que são negligenciadas em maior ou menor grau etc.
Se o objetivo é rejeitar o especismo, então é útil imaginar quais causas priorizaríamos se não soubéssemos a espécie das vítimas. Dificilmente alguém discordaria que, quanto maior o número de vítimas, quanto mais elas sofrem individualmente, e quanto mais negligenciado for o problema, mais fortes as razões para priorizar a causa que lida com o problema em questão. Entretanto, de acordo com esses critérios, deveríamos dar uma alta prioridade a tentar melhorar a situação dos animais não humanos. Não porque são animais não humanos, mas porque sua situação satisfaz melhor todos aqueles critérios. Vejamos:
Quantidade de vítimas. Levando em conta somente a quantidade de vertebrados mortos anualmente (3 trilhões [1]), isso já significa que são mortos por dia mais de 8 bilhões de animais não humanos (isto é, mais do que a população humana inteira). Se adicionarmos os invertebrados sencientes a quantia é gigantescamente maior (podendo chegar a 29 trilhões de mortes anuais [2]). Além disso, ao contrário da crença comum, a maior parte dos animais na natureza nasce para ter vidas repletas de sofrimento e têm mortes muitíssimo prematuras [3]. Não há estatísticas sobre isso mas sabe-se, por exemplo, que a quantidade total de animais sencientes na natureza em um dado momento varia entre 1 e 10 quintilhões de indivíduos [4]. Isso significa que, se fizermos uma analogia com o período de um ano, a população humana representaria no máximo 0,25 segundos do ano (todo o restante seriam animais não humanos).
Dano por vítima. A vasta maioria dos animais não humanos nasce, ou na exploração animal ou na natureza. Em ambos os casos, a norma é nascerem para ter vidas repletas de sofrimento e para terem uma morte bastante prematura, geralmente violenta. Obviamente, existem humanos que nascem para ter vidas repletas de sofrimento e que morrem bastante prematuramente. Entretanto, a norma na vida humana não é que nasçam, por exemplo, sofrendo o que equivalente ao que os animais não humanos sofrem em uma granja industrial.
Grau de negligência. Dada a prevalência do especismo antropocêntrico, a situação dos animais não humanos, apesar de possuir uma escala de dano astronomicamente maior, é muito mais negligenciada. Os humanos já recebem proteções que os animais não humanos não possuem de maneira alguma, há muito mais pessoas lutando por causas humanas e os recursos disponíveis para causas humanas são muito maiores.
Assim, se não soubéssemos a espécie das vítimas, certamente que diríamos que um problema assim mereceria alta prioridade, e que o erro estaria é em exigir que as pessoas que se dedicam a esse problema passassem a se dedicar a outros problemas com escalas de dano muito menores, que já recebem uma quantidade muito maior de recursos e possuem um número muito maior de pessoas engajadas.
Basta ver o que seria dito se os papéis fossem invertidos. Imagine que os animais não humanos estivessem hoje na situação em que se encontram os humanos, e os humanos estivessem hoje na condição dos animais não humanos, e que nessa realidade alternativa a causa animal já contasse com um número muito maior de adeptos do que as causas humanas e recebesse uma quantidade muito maior de recursos. Será que os que acusam os defensores dos animais de especismo diriam que os que lutam pelos humanos nessa situação hipotética estariam a ser especistas? Obviamente que não. Sequer o fazem em nossa realidade, quando os papéis sequer se inverteram. Vejamos:
É interessante observar que normalmente apenas os defensores dos animais é que são cobrados a defenderem causas humanas. Aqueles que se dedicam somente a causas humanas normalmente não são acusados de especismo por não se dedicarem a lutar pelos animais não humanos (acusação que, nesse caso, faria sentido, já que estão negligenciando aquele problema que dariam prioridade se não soubessem a espécie das vítimas). Aliás, mesmo quem não se dedica a causa alguma dificilmente recebe o mesmo tipo de crítica que recebem os defensores dos animais. Isso parece sugerir que, no entender de quem faz a crítica, defender os animais é pior do que não defender ninguém. E isso sugere fortemente também que a acusação de especismo que fazem sobre os defensores dos animais é simplesmente uma forma de disfarçar o seu próprio especismo.
[1] Estatísticas disponíveis em:
[2] Para estatísticas ver:

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